Home Arquivos Anunciar Download Contato

 

Editorial edição 84

Ausência do profissional de dança em espetáculos é lamentável

Milton Saldanha

Ver é uma forma de aprender. Quem vai a espetáculos desenvolve notável senso crítico. Porém, muitos profissionais (de todas as modalidades) não conseguem perceber coisa tão evidente e elementar. Não se ajudam e não ajudam a dança brasileira. 

Antes de me tornar fanático por dança já fui fanático por outras coisas. Uma delas foi teatro. Houve um ano, na década de 70, em que vi todas as peças de teatro encenadas na cidade de São Paulo. Do menor e mais modesto espetáculo ao mais refinado e ousado, de Martins Pena a Shakespeare, de tragédias gregas a montagens de textos escolares... Vi tudo! Lia todas as críticas. Ia ao teatro três vezes por semana. Quando a safra estava boa, chegava a ir todas as noites numa única quinzena. Trabalhava na imprensa, como fiz a vida toda, e só não me tornei comentarista de teatro porque não quis. Tinha outros projetos na carreira, fiquei uns 20 anos nas áreas automotiva e econômica, outros tantos comandando equipes. Com naturalidade, sem ter programado nada, essa assiduidade em teatro, na época, me dotou de senso crítico muito afiado. Assim que começava o espetáculo, não precisava mais do que cinco minutos, em raros casos dez, para fazer um diagnóstico da qualidade da montagem, em seu conjunto, incluindo texto, cada interpretação, direção, cenografia, iluminação etc. Não conto isso como glória, apenas como útil testemunho: qualquer pessoa, na mesma situação, desenvolve esse tipo de capacidade. Hoje, confesso, indo a teatro menos do que gostaria, e sem o tesão louco daqueles tempos, não tenho mais a mesma agilidade crítica. Hoje posso ter dúvidas que naquele tempo com certeza não teria. Estou enferrujado. Pensar é uma habilidade como outra qualquer, exige vivência e prática. É como falar um segundo idioma; sem praticar perde-se a fluência.

Agora, trabalhando como jornalista de dança nestes últimos oito anos, tento aprender alguma coisa. Como? Usando para a dança a experiência que tive como rato de teatro. Ou seja, indo ver espetáculos de dança. Menos ainda do que gostaria e principalmente necessito, mas começando um processo que classifico como de iniciação em dança. Não estou falando de dança de salão, minha praia desde o início da adolescência, e sim das demais modalidades, sobretudo clássico e contemporâneo. Ver dança, e ler sobre dança. Só assim se aprende, como me ensinou o teatro.

Um texto teatral linear é uma mensagem direta, que chega a você com a ajuda de todos os recursos da comunicação humana, além da força da imaginação, ao contrário da dança, que é hermética por natureza. As dificuldades a transpor são mais complexas, inclusive para os intérpretes. Como se conta uma história em dança? O que um bailarino quer dizer numa performance experimental, quebrando padrões? O que é linguagem corporal? Como não acredito em arte sem compromisso humanista, é natural que tenha certa dificuldade em assimilar a linguagem da dança em sua plenitude transformadora. Todavia, uma coreografia bonita e inovadora é uma conquista estética, transfigura o ser humano, leva-o a superar seus limites, é criação e arte... perecível. A emoção de ver um grande espetáculo abraça vários detalhes, e talvez o mais incrível seja testemunhar a cada segundo um momento único, que não foi igual antes e que jamais será igual depois. Mais belo, talvez. Se isso não é transformação, é o que? Aceitar a dança por essa ótica já é um grande passo para não rejeitá-la, nossa natural tendência em torno de tudo que é novo e não entendemos.

É com esta humildade, a do consciente de suas limitações e dificuldades intelectuais, menos mal que não conformado, que lamento e critico o comodismo mental e a preguiça física físico de tantos alunos e profissionais de dança. Eles não freqüentam espetáculos, mesmo quando há preços baratos. Isso é como uma recusa a aprender, crescer, desenvolver aptidão crítica. Aqui volto à experiência que contei no início, do meu envolvimento com o teatro. O objetivo era este, deixar claro que só com obstinada determinação rompemos nossos curtos horizontes e ampliamos nossa capacidade de entender. E, entendendo, de formular. Quantos profissionais da dança, de qualquer modalidade, foram conhecer a beleza plástica de "O Grande Circo Místico"? Quantos já tiveram a curiosidade profissional de saber de perto, ao vivo e a cores, por que o Grupo Corpo tem a fama que tem? Quantos outros jamais pensaram, nem que fosse uma vez, em fazer um pequeno investimento cultural para saber como é o Festival de Dança de Joinville? (Afinal, não é em outro país). Vamos parar por aqui, as perguntas seriam infindáveis e muitas respostas com certeza constrangedoras.

Tudo bem, desconhecer estas e muitas outras coisas não é uma tragédia. Perco a conta do que também desconheço. Só que, na medida do possível, devemos buscar velhas e novas fontes de conhecimento. O inaceitável é a indiferença permanente. Há pessoas que passam um ano inteiro, ou uma vida inteira, sem saber o que está acontecendo na dança do Brasil e do mundo. Na dança de salão esse desinteresse afeta a maioria, com certeza. Mas em outras modalidades também há profissionais mal informados.

Sempre há tempo para uma revisão autocrítica e esboço de prazeroso plano de aprendizado. Os resultados serão rápidos e compensadores. Se esse for o seu caso, acompanhando o que acontece na dança, e não apenas no seu cantinho, você um dia será outro profissional, muito mais capaz e verdadeiro. E, acima de tudo, dotado de valiosos critérios. Cabe ainda um aspecto importante nestes comentários: quando vamos a um espetáculo, além do enriquecimento cultural e do prazer que desfrutamos, estamos recompensando o esforço dos empreendedores e ajudando a fortalecer a dança brasileira. 

assine nosso boletim gratuitamente
Imprima esta matéria

 

 

Produzido e  administrado pela  Page Free Design - 2003