Editorial edição

 Aprenda tango. É bom demais!

Milton Saldanha

De tempos em tempos é bom a gente voltar a ser aluno de alguma coisa. O reencontro com limites e dificuldades nos dá belas lições de humildade. Abre horizontes. Enseja novas amizades. Aprofunda nossa percepção das pessoas. Aprimora a capacidade de ensinar. Este repórter agora é aluno de tango, bem iniciante. A experiência é maravilhosas, relatada em alguns aspectos neste depoimento, com o objetivo explícito de estimular mais pessoas a seguirem pelo mesmo caminho.

 Tango já!

Até parece... Demorei vários anos para começar a aprender a dançar tango. Falta de tempo, pela atribulada vida de repórter, pensará o leitor. Nada disso. Foi preguiça mesmo. Assumida. A falta de tempo entrava como desculpa, aos outros e para meu próprio conforto. De tanto ouvir falar que é difícil, que requer treinamento, práticas, parceira, etc, a preguiça aumentava. Alguns dos próprios tangueros se colocam como elite e fomentam tais mitos, sem maldade, certamente só para impressionar, e sem perceber afastam pessoas e prejudicam o crescimento do segmento.

Faltava a propaganda a favor. Por exemplo: É difícil, mas não impossível, qualquer pessoa aprende. É lindíssimo e sensual, mais do que qualquer outra dança de salão. Não se esgota em meia dúzia de passos e movimentos, as possibilidades são infinitas e todo dia surge algo novo, em algum lugar do mundo, pois se trata de arte dinâmica e hoje universal. Isso significa que você pode e deve, sim, improvisar e ser criativo no tango, quebrando tabus, pois o que cansa é a mesmice e aquele ciclo vicioso dos mesmos copiando os mesmos. Ao contrário da lenda, não precisa de parceira ou parceiro fixo. Pelo contrário, quanto mais variar, melhor dançará com qualquer pessoa. Você pode optar pelo tango-show, mais complicado, ou pelo tango de pista, chamado milonguero, simples e gostoso, só para curtir. São Paulo está muito bem servido de academias e professores especializados no tango. Existem ótimos locais para dançar, com músicas lindíssimas, inclusive ao vivo. A comunidade tanguera tem pessoas maravilhosas, abertas para recebê-lo fraternalmente. O resto a gente conta lá adiante.

Nunca vou esquecer de uma viagem a Buenos Aires, em 1998, a convite de Jaime Arôxa, para cobrir uma das muitas excursões tangueras que ele promoveu, em parceria com o grande mestre Mingo Pugliese. Nosso grupo de cerca de 60 pessoas, maioria mulheres, visitou as principais milongas, em três noites. Eu morria de inveja vendo o pessoal dançar e não me atrevia a entrar na pista. Tinha algumas noções teóricas, sobre o básico, mas prática é coisa bem diferente. Todo mundo sabe que para pintar precisa-se de tela, tinta e pincel. Saber usar é outro departamento. Era mais ou menos isso que acontecia comigo no tango. Sabia sobre caminhada, condução com o peito, postura, etc., e tenho ouvido musical. São valiosas informações e critérios, mas não tinha o principal, que é saber aplicar isso com o próprio corpo.

Para um velho dançarino de outros ritmos e veterano de várias academias paulistanas, ainda que inconstante, foi sempre uma frustração muito grande. Jurei a mim mesmo que assim que voltasse de Buenos Aires começaria aulas de tango. Trai meu próprio juramento. Que aula, que nada. O tempo foi passando, e nada. Os convites já pipocavam desde os tempos em que Walter Manna tinha sua academia em Pinheiros. Depois, perdi a conta das convocações de Virgínia Holl e de Margareth Kardosh. Prometia ir, mas acabava fugindo.

O dever de ofício passou a exigir minha presença, cada vez mais, nas milongas (infelizmente ainda poucas) de São Paulo. Para fotografar, documentando shows; para entrevistas ou negócios. De tanto ver, e de tanto gostar de ver, a vontade de dançar foi crescendo. Só que para dançar, a gente tem que aprender. Olhar ajuda, mas não resolve. Se você tentar imitar, sem base técnica, fica caricato, senão impossível até pela falta de equilíbrio, de noção de condução e principalmente dos códigos que regem determinados movimentos.

De repente, assim sem mais nem menos, dei um pontapé no traseiro da preguiça e resolvi aprender tango. Mesmo sabendo que será impossível manter regularidade nas aulas e práticas, afinal não passo dois meses sem uma viagem, as vezes são duas ou três, fora os dias de fechamento de edição, de correria total, varando madrugadas na redação e na gráfica. Você não deve ser menos ocupado, mas achará, como achei, tempo para aprender. Realmente, é só querer.

São Paulo tem excelentes professores e professoras de tango. Deveres éticos me impedem de ficar citando aqui os nomes das minhas mestras, mas posso assegurar que são maravilhosas. Estou motivado.

O primeiro tango, por exemplo, a gente nunca esquece. O meu foi numa das milongas periódicas da Confraria do Tango, no Studio de Dança Forma e Movimento, na Mooca. Tive a honra de ser tirado pela extraordinária bailarina e encantadora pessoa que é a Margareth Kardosh, parceira do feríssima Vitor Costa. Ao dispensar formalidades tolas e tomar a iniciativa, numa atitude simpática, ela trocou minha natural hesitação por segurança. Generosa também, a Margareth, pois sem saber me deu um presente. Mesmo com todas as limitações e certamente erros normais de iniciante, com meu tango tão simples e despojado, sem as firulas dos grandes mestres, desfilando na pista com uma bailarina desse calibre, extremamente leve e sensível à condução até na ponta dos dedos, o sonho de todo cavalheiro, me senti como um verdadeiro milonguero. Foi emocionante. Aí não parei mais.

É essa magia que você tem que experimentar para amar a dança. Sem esse doce delírio não vale a pena o esforço de aprender. Também não espere virar rei, ou rainha. Vá para as pistas, faça o que pode, esqueça do mundo, entregue seu coração à música e à parceira, ou parceiro, e deixe o resto por conta das aulas e do tempo. Sem perceber, quando menos esperar, estará não só dançando, como até improvisando, fazendo adaptações de outros ritmos que domina, e, não duvide, criando seus próprios passos. Tudo isso, afinal, que é o melhor da dança. Aula é essencial para dar base técnica e recursos, e não para engessá-lo em dogmas e passos marcadinhos, automatizados e dissonantes, como se vê muito nos bailes.

O tango é passional. É bonito, etc e tal, mas tem um peso forte e muito especial. Você não lida com esse aprendizado com a leveza da salsa, ou com a irreverência do samba. É outro tipo de emoção, muito forte. Em 1999, com objetivo de fazer uma reportagem sobre a experiência, fiz aulas de flamenco na Bio-Ritmo durante uns quatro ou cinco meses. Foi a única emoção comparável ao tango. O flamenco é muito mais difícil e complexo, sobretudo quando começa a rapidez do sapateado, bem rasteiro, conjugado com o movimento alto de braços, alongando seu corpo numa postura que ambiciona a perfeição. Além disso, você tem que acompanhar a agilidade do grupo, respeitando o tempo certo da batida do pé. Haja concentração, é fantástico, você esquece das horas. Quando decidi parar levei bronca da minha querida professora, a bailarina Andrea de Carvalho. Contudo, perdia o sentido aprender e não ter onde dançar, porque em palco eu não subiria nem amarrado, pois ninguém melhor do que eu reconhecia a mediocridade do meu desempenho, apesar dos esforços e da paixão, e mesmo com a justificativa do pouco tempo de treino. Afinal, eu tinha caído lá para fazer uma reportagem e não para virar um novo Cortez. Mesmo assim, até hoje, quanto escuto uma sevilhana, com aqueles solos de trompete alongados, o sangue ferve e os olhos brilham, como se algum dispositivo de memória genética acionasse minha adormecida raiz ibérica. No tango, revivo experiência parecida, porque não consigo ser frio nem em classe, desde que tenha música. Nas milongas, então, é uma espécie de transe. Fico enlouquecido para dançar, para azar das minhas amigas mais queridas, pois é natural que prefiram quem já sabe bem. Calma, um dia chego lá.

Essas experiências me permitem perceber que existem danças tão emocionais, que se o aluno sair machucado ele não volta às aulas e muito menos às pistas, como já vi acontecer. Por isso, no tema em questão, o único cuidado é ficar longe das "tangueras", ou "tangueros", que acham que sabem tudo e compensam suas frustrações pisando na auto-estima alheia.

São sutilezas assim que supostos professores de dança jamais entendem. Alguns são prepotentes, frios, e se imaginam melhores do que realmente são. Queimam o mercado, e isso é uma pena. Mas, felizmente, repito e asseguro que existem excelentes professores em São Paulo, que trazem o tango nas veias e que entendem que dar aula de dança – mais do que ensinar passos – é lidar com a sensibilidade humana.

E não basta que lhe ensinem passos e efeitos para impressionar, se você não entender e assimilar o principal, que é a alma desta dança sensual e dramática. Todo seu corpo tem que estar diretamente conectado ao sentimento, mesmo em aula. Na milonga, será estado de graça. Veja, por exemplo, o jeito sedutor de abraçar, antes de começar o tango, ou durante a dança para corrigir a pegada: lento, leve, com seu braço bailarino fazendo uma suave onda no ar, protegendo, acariciando e aconchegando a dama, agora sim com virilidade. Afago que ela retribui, se for do ramo, escorrendo sutil e sensualmente a mão da sua nuca aos ombros, onde encontrará apoio. É de arrepiar. Por favor me avise, urgente, se conhecer alguma dança com maior ternura.

Milton Saldanha

Jornalista

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