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Flávia Garcia, medalha de ouro em Joinville

"É uma vergonha só existir uma companhia clássica no Brasil"

 Nesta entrevista, mais um bate papo informal, você vai conhecer alguns detalhes saborosos e curiosos da profissão dos bailarinos. Há situações que o público nem imagina

Logo após a Noite dos Campeões, no encerramento do 21º Festival de Dança de Joinville, onde Flávia Garcia Nascimento recebeu das mãos do governador de Santa Catarina, Luiz Henrique da Silveira, a medalha de ouro como melhor bailarina do Festival, além do cheque de R$ 3 mil, concedeu esta entrevista ao Dance. Jurandir Rodrigues, seu partner e também namorado, bailarino profissional de larga experiência e sempre muito aplaudido, participou da entrevista. Jurandir não compete. Eles dançaram na categoria Ballet Clássico de Repertório – Grand Pás de Deux – Avançada, interpretando Dom Quixote.

Apaixonados pelo balé clássico, e nem poderia ser diferente, acham lamentável que o Brasil só tenha uma companhia de clássico, no Rio, e que a criação da companhia paulista, há três anos, tenha durado só três meses.

Flávia está no balé desde criança. Fez também flamenco, jazz e piano. Já ganhou outros prêmios, como Passo de Arte, Festival de Brasília, Cecília Kerche e outros, além de um segundo lugar em Joinville de Variação. Tem também um prêmio internacional, para estudantes, em Cuba, onde ficou cinco meses estudando, das 8 da manhã às 6 da tarde, e se formou pela renomada Escola Nacional. Considera, até aqui, sua principal experiência. Hoje vive de aulas, enquanto não consegue se sustentar só com sua própria dança.

Jurandir arrebatou a platéia de Joinville, como já fez em muitos outros teatros. Aprofundou sua técnica na Alemanha e começou ao contrário da maioria dos seus colegas, primeiro fazendo jazz, contemporâneo, moderno etc,, e só depois optando pelo clássico. Ironicamente, antes não sentia atração pelo gênero. De tanto ouvir conselhos, experimentou, gostou e mudou.

Flávia e Jurandir conheceram dias de glória também em Jackson, no Mississipi (EUA), onde foram selecionados para participar do USA International Competition, um mega festival. Flávia competiu, Jurandir foi acompanhante. Dançaram Dom Quixote e foram longamente aplaudidos, com o público em pé. Precisa mais?

Ambos integram a premiadíssima Especial Academia de Ballet Aracy de Almeida, instalada no Tatuapé, em São Paulo.

Dance – Há quanto tempo você está no balé?

Flávia – Desde os 4 anos de idade. Estou com 20.

Dance – Ainda estuda?

Flávia - Normalmente, para quem se torna bailarino profissional, fica muito difícil conciliar outras atividades, como freqüentar uma faculdade. Concluí o segundo grau.

Dance – Como é sua vida diária?

Flávia – Dou aulas de balé.

Dance – Qual é seu maior sonho no momento?

Flávia – Gostaria de entrar numa companhia fora do país.

Dance – Essa medalha de ouro conquistada em Joinville pode contribuir para isso?

Flávia - Talvez. De repente, alguém pode ver e se interessar pelo meu trabalho. Joinville ajuda bastante dentro do Brasil.

Dance – Por que ir para o exterior?

Flávia – Porque aqui está impossível. Não se consegue patrocínio. Nossa companhia, por exemplo, tem 22 bailarinos clássicos e não tem patrocínio. Até gostaria muito de ficar no Brasil, mas aqui é muito complicado.

Dance – Tem que investir muito financeiramente?

Flávia – O problema na dança clássica é que a gente gasta muito, tem que investir alto até se tornar uma profissional. Ganhar dinheiro na dança é difícil. A gente tem que dar aulas para poder sobreviver.

Dance – Já andaram falando por aí que o balé clássico vai acabar. Acho absurdo alguém dizer isso. É lindíssimo, é arte, e arte não acaba. O que vocês acrescentam?

Jurandir - Basta montar um balé clássico, com bailarinos brasileiros, no Teatro, e garanto casa cheia. Então por que não há espetáculos? Porque o investimento é alto e não existem patrocinadores. Há três anos o Teatro Municipal de São Paulo apresentou projeto para formação de uma companhia clássica. Fiz parte, a Flávia era muito nova, não podia participar. A idade mínima era 18 anos. A companhia durou só três meses, e nosso espetáculo teve casa lotada. Passou como uma companhia fantasma, numa mudança de governo.

Dance – É inacreditável que um país do tamanho do Brasil só tenha uma companhia de clássico profissional, no Rio.

Jurandir – Única, e tem a nossa, que fez um espetáculo agora em julho, mas um trabalho bem voluntário. Nós, bailarinos e bailarinas, não recebemos para estar lá. Dançamos porque queremos criar alguma coisa. É uma vergonha uma cidade como São Paulo não ter uma companhia clássica.

Dance – O municipal tinha que ter. Isso precisa se transformar numa bandeira cultural na cidade.

Flávia – Qualquer país tem companhias clássicas, até em Cuba, que é pequena. Aqui é uma vergonha!

Jurandir – Na Europa, principalmente na Alemanha, onde fiquei bastante tempo, você encontra companhias clássicas em teatros de qualquer cidadezinha. A companhia dança clássico e dança tudo. As pessoas precisam perceber que o clássico é a base de tudo. Mesmo para fazer contemporâneo tem que passar por aulas de clássico todos os dias.

Flávia – É impossível o clássico morrer.

Dance - É realmente impossível. É arte, e arte não é algo finito.

Jurandir – E já está no próprio nome, é clássico.

Dance – Essas coisas experimentais sim são passageiras, o nome já está até dizendo. No clássico, não precisa ninguém entender para achar bonito. É estético, é visual. Você traz uma pessoa simples da periferia para assistir e ela fica extasiada, porque plasticamente tudo é muito lindo. Você está fazendo aquele tremendo esforço e está sorrindo, tudo parece muito leve.

Jurandir – Aí é que está a diferença entre o artista e o atleta. Se o atleta vai correr, por exemplo, ele faz caretas, expõe o esforço. O bailarino não pode mostrar que está fazendo força, tem que estar sempre sorrindo. Ele tem que passar para o público o conforto do movimento, e ao contrário do ator, que pode falar, o bailarino tem que contar tudo com o corpo.

Flávia – E geralmente é só um trecho. Quando é uma história completa, imagine o que isso significa.

Dance – Como é a estrutura de um balé de repertório completo?

Jurandir – Geralmente eles são criados em três atos. O tempo máximo de um repertório é de uma hora e meia. Com intervalo chega a duas horas.

Dance – Há limite de idade para o balé clássico?

Flávia – Depende de cada pessoa.

Jurandir – Esse é um desafio que estou querendo. Quero ver até que idade posso ir. Veja que o Barysh (Mikhail Nikolayavich Baryshnikov) já passou dos 50 anos e continua dançando. Mas chega numa hora em que a musculatura não corresponde. A arte de uma pessoa madura é mais grandiosa. De repente, o corpo não corresponde tecnicamente, mas a arte, a presença de chegar em cena, e passar aquela energia para o público, você vê mais forte nas pessoas maduras. Com uma certa bagagem, você até consegue fazer as coisas tecnicamente. Há bailarinos de 45 anos fazendo tudo. Patrick Dupont esteve no Brasil, pelo Ópera de Paris, dançando Apollo divinamente no Teatro Municipal de São Paulo. E já tinha mais de 40 anos.

Flávia – Ana Botafogo está aí, maravilhosa.

Jurandir – A própria Cecília Kerche. Isso depende muito da musculatura, no caso do homem. Você vê por aí bailarinos novos e já estourados. Há bailarinos com 23 anos que já estouraram os dois joelhos, fraturaram bacia, as costas já não agüentam. Há muita contusão. Conheço caso de gente que já fez sete cirurgias no joelho. No meu caso, estou com 30 anos e acho que vou agüentar o tranco. Porque tenho uma musculatura misturada, com algo de índio, descendência direta do meu pai. Meu pai era filho legítimo de índio, então sinto que tenho uma musculatura diferente de outros bailarinos. Isso é genético mesmo.

Dance – Você dança com bailarinas diferentes? Como lida com isso?

Jurandir – Danço com muitas bailarinas diferentes, e sempre com a Flávia. Estou acostumado a dançar com bailarinas mais altas do que eu. Com algumas você encontra um pouco de dificuldade para poder parnear, mas por falta de prática, de estar ensaiando, ficar acostumado um com o outro. Já aconteceu da bailarina não querer entrar em cena na hora do espetáculo, por causa de nervosismo. Uma vez estava em cena dançando um grand pás de deux e a bailarina resolveu não entrar para fazer os sautés. Aí gritaram das cochias para eu continuar em cena, fazendo a parte dela. Tive que ficar em cena improvisando. Ela tinha sofrido uma contusão na panturrilha, mas eu estava em cena e não sabia. Fiz todos os saltos do repertório. (Risos).

Dance – E tem aquela coisa do dia certo, né?

Jurandir – É verdade. As vezes a bailarina está linda, maravilhosa, mas chega aquele dia, não sei, o namorado vai assistir e ela fica nervosa. Ou são os pais na platéia. Ela fica nervosa por ansiedade.

Dance – Isso é o normal do ser humano, em qualquer atividade. Existe o dia em que nada dá certo, e fica pior insistir.

Jurandir – Já aconteceu também de me ligarem na última hora perguntando "olha, o bailarino se machucou, dá para você dançar hoje à noite?" E fui, sem conhecer a bailarina. Ensaiamos no palco e dançamos. Essas coisas acontecem e nós bailarinos acabamos pegando mais experiência, de estar parneando uma bailarina que pode ser alta, baixa, gorda, magra. Outro aspecto é que a platéia não quer saber se você está cansado, ou se viajou o dia todo. Eles querem ver o espetáculo. Passamos por essa exigência e não somos perdoados as vezes.

Flávia - As pessoas acham que somos máquinas. E a dança nunca é igual. Pode ser pior, ou melhor, mas nunca é igual.

Jurandir - Num certo dia, onde nunca falha, acaba falhando. Basta um pequeno escorregão e vem o desequilíbrio. A cobrança é muito grande e é por isso que muitos desistem do clássico e vão dançar contemporâneo e moderno.

Dance – Essa questão da estatura muda muito para o bailarino?

Flávia – Muda muito, para os dois.

Jurandir – Se faço um portée (quando o bailarino ergue a bailarina e a conduz de um lado para outro) com a Flávia ela não fica com medo, porque sou baixo. Se for um bailarino alto, dependendo da bailarina, pode se sentir insegura. Os bailarinos altos são para dançar uns tipos de balé, os baixos outros tipos. Eu sou um tipo de bailarino caráter. Danço balés fortes, não príncipes. Não balés brancos. Os altos se encaixam mais com os príncipes, para dançar um Quebra Nozes, um Lago dos Cisnes. Eu já sou para Corsário, Dom Quixote. O bailarino baixo é um pouco mais veloz que o alto. Como o alto tem uma perna mais alongada, acaba ficando mais lento. Mas isso não é padrão, não é regra. O ideal é a estatura média. Mas observe que os grandes bailarinos de todos os tempos eram, ou são, baixos: Baryshnikov, Nureyev. O russo Faruk Ruzimatov parece alto, porque é longilíneo mas é baixo. Também o excelente bailarino japonês Tetsui Kumakawa. Mas há também bailarinos altos excelentes.

Dance – Existe mesmo essa história de regime, passar fome?

Flávia – Existe, e é uma tortura. Hoje (dia da apresentação) não tomei café da manhã, não almocei. Agora jantei bem. Tem gente que não precisa disso, pode comer a vontade, e não é o meu caso, infelizmente.

Jurandir – Eu não agüento essa história de regime. Faço dois dias e páro. (Risos).

Dance – A experiência de outras modalidades ajuda no clássico?

Flávia – Sim, no caso o jazz, que ajuda muito no salto.

 

 

SERVIÇO

Especial Academia de Ballet Aracy de Almeida

R. Padre Estevão Pernet, 615

Tatuapé, São Paulo

Tel. 296-1020

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