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Jornal Dance - A Dama da Gafieira - Maria Antonietta

Livro: A Dama da Gafieira - Maria Antonietta, de Milton Saldanha

A Dama da Gafieira

Maria Antonietta

A Dama da Gafieira

São Paulo, 2010

Milton Saldanha

Maria Antonietta: A Dama da Gafieira

Copyright © 2010 by Milton Saldanha

Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida de qualquer forma ou por quaisquer meios eletrônico,

mecânico, fotocopiado, gravado ou outro, sem autorização prévia por escrito de Milton Saldanha.

É proibida a comercialização deste livro.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Saldanha, Milton, 1945- Maria Antonietta: a dama da gafieira / Milton Saldanha.
São Paulo: Phorte, 2010.

Inclui bibliografia

ISBN 978-85-7655-081-5

1. Souza, Maria Antonietta Guaycurús de, 1923-2009. 2. Dançarinas - Rio de Janeiro (RJ)
Biografia. 3. Dança de salão - Rio de Janeiro (RJ). I. Título.

09-6295 CDD: 927.933

CDU: 929:793.33

08.12.09 12.15.09 016712

Impresso no Brasil

Printed in Brazil


Este livro é carinhosamente dedicado

A Naim José Ayub,

por suas qualidades humanas, brilho profissional,

apreço ao bom humor, exemplo do prazer de viver

com alegria. E também pelo apoio e afeto que

sempre devotou aos bailarinos e dançarinos de todos os gêneros,

e ao comandante Michele De Gregorio,

navegante de todos os mares, que se tornou um

verdadeiro amigo e conquistou com sua simpatia e

carisma os corações dos dançarinos brasileiros.

 

Agradecimentos

A Renê Hermann

Francisco Ancona

Família de Maria Antonietta, em especial,

João Piccoli, Marco Antonio Rondon,

Rita de Cássia Rondon e

Luiz Henrique Rondon.

A Christina Paz

Casal Gracinha Araújo e Airton Gontoff

Rubem Mauro Machado

Rachel Mesquita

Jaime Arôxa

Carlinhos de Jesus

Theo e Monica

Rodolfo Ancona (Studio Ruda)

Kriz Knack.

 

Homenagem

A Costa Cruzeiros tem um lugar considerável na

história das navegações no litoral brasileiro, desde 1948.

Nos últimos anos, esse papel só tem aumentado, com

cruzeiros cada vez mais numerosos, utilizando alguns

dos maiores e mais modernos navios do mundo. Esse

crescimento, que muito nos orgulha, só foi possível

graças à confiança e à amizade de nossos hóspedes.

Isso nos leva ao compromisso de nos superarmos a cada

ano. A criação dos cruzeiros temáticos, entre os quais

o “Dançando a Bordo” é um dos destaques, é uma das

melhores respostas aos anseios da nossa clientela fiel. A cada ano buscamos nos superar na oferta

do máximo de qualidade e satisfação. Este livro é parte desse esforço.

A mestra Maria Antonietta, figura emblemática da dança de salão, fez parte por um breve

momento da história do “Dançando a Bordo”. Breve, mas inesquecível. E história a gente tem de

preservar. A lição que Antonietta nos deixou é de que devemos buscar sempre a alegria na vida.

Em sua pessoa, homenageamos a todos aqueles que amam a dança, em todas as suas formas, e a cada um de vocês.

Renê Hermann

Diretor-geral da Costa Cruzeiros no Brasil

 

Uma palavrinha

Milton Saldanha

Quando recebi a proposta de Francisco Ancona para fazer este livro, com o patrocínio da

hoje maior apoiadora da dança de salão, a Costa Cruzeiros, não parei para pensar. Tomado de

entusiasmo, respondi na hora que aceitava. A ideia de Francisco, consultor de marketing da famosa

empresa mundial de navegação turística, aqui concretizada, foi homenagear a memória de Maria

Antonietta Guaycurús de Souza, a mais famosa mestra em todos os tempos das gafieiras cariocas.

Pelo respeito e admiração que sempre tive por ela e, ainda, por minha vida intensamente ligada a

esse meio desde muito jovem, eu não teria mesmo nenhuma razão para recusar, ou sequer hesitar.

É uma honra e uma alegria ser o executor deste projeto. É meu segundo livro com grande

personagem da dança. O primeiro foi As 3 Vidas de Jaime Arôxa, pela Senac Rio e, também,

patrocinado pela Costa Cruzeiros. Mas, ao contrário daquele, este não é uma biografia. Que, a

propósito, já existe, é o livro Enquanto Houver Dança, de Teresa Drummond. Esgotado, ou difícil

de encontrar, recebi meu exemplar por carinhosa cortesia do casal Airton e Gracinha Araújo, de

Curitiba. Vale registrar que existe também um filme, documentário, sobre a mestra. É o curta-

-metragem Antonietta, do cineasta Silvio Tendler.

Optei por gravar depoimentos de algumas pessoas influentes e que estiveram de alguma

forma ligadas à vida de Maria Antonietta. Depois fiz o texto final, como se fossem pequenas

crônicas escritas por elas. Com o cuidado, claro, de manter o máximo de fidelidade às suas palavras

e sentimentos. Para não quebrar o tom de intimidade, mantive o uso que fizeram da primeira

pessoa nas narrativas. As exceções são os textos de Francisco Ancona e Rubem Mauro Machado,

além do meu próprio, extraídos da edição de abril de 2009 do jornal Dance, que noticiava a morte

da mestra, aos 82 anos, ocorrida na manhã de 7 de abril do mesmo ano.

Cada depoimento aborda ângulos diferentes, contendo fragmentos que, somados, vão

compondo, ao longo da leitura, um perfil bastante amplo e interessante da mestra.

Como qualquer mortal, ela teve suas fraquezas humanas, aqui não abordadas por duas

razões: primeiro, porque seguramente ninguém escapa delas, não é inusitado, isso faz parte da

vida de todo mundo; segundo, e principalmente, porque seus pequenos defeitos não tiveram a

relevância das grandes virtudes.

Outros capítulos especiais são as palavras da própria mestra, na entrevista explosiva e

polêmica que concedeu ao jornal Dance, em 1997; e na coletânea de frases extraídas das gravações

de TV, dirigidas por Rodolfo Ancona, o Ruda, durante as homenagens que ela recebeu no “5º

Dançando a Bordo”, em 2008, no navio Costa Magica.

A primeira ação neste projeto foi me reunir com familiares de Maria Antonietta, no Rio,

para explicar as minhas intenções e as do patrocinador. Esse encontro foi articulado pela cantora

Christina Paz, amiga de Antonietta e da família, que me acompanhou todo o tempo, num apoio

decisivo. Christina, inclusive, gravou o samba Antonietta na Gafieira, de Maurício Tapajós, Aldir Blanc

e Paulo Emílio, cuja letra está também aqui, CD que a própria personagem carregava na bolsa e

pedia que tocassem nos bailes, sempre atendida.

Obtivemos, assim, dentro do máximo rigor ético e respeito, o consentimento e a cooperação

da família. O encontro serviu, também, para ouvir seus depoimentos e produzir fotos.

É um livro leve, para leitura rápida. A densidade, e muita, fica por conta apenas da personagem

homenageada por seus amigos, entre os quais este autor.

 

Prefácio - Esta é uma história de amor

Francisco Ancona

Contam as biografias que Maria Antonieta, esposa de Luís XVI, rainha da França por

15 anos – exatamente os que antecederam a Queda da Bastilha (14 de julho de 1789) – era

fascinada pelas festas da noite parisiense. Em especial, pelos bailes da corte, onde participava

mascarada nos famosos “bal masqué”. Podia, então, dançar entre os plebeus, sem ser

reconhecida...

Sua homônima brasileira, amazonense carioca da gema, não poderia permitir-se tal

artifício. Antonietta sempre foi reconhecível a distância, tal a singularidade de sua estampa

e o dínamo de seus movimentos. Figura de proa da dança de salão no Brasil, nos últimos

cinquenta ou sessenta anos, deixou incontáveis alunos, parceiros, admiradores e – algo em

comum com a antecessora – súditos.

Este livro de depoimentos sobre a mestra pretende repropor alguns momentos e

emoções que sua existência nos proporcionou. Seja nas pistas de dança ou fora delas, foram

muitos e marcantes. As singelas palavras de seus filhos, sobrinho, neto e demais familiares

mostram o quanto sua impressionante energia serviu de motivação e modelo para aquelas

vidas, e quem sabe para quantas mais. Os mestres de hoje – Rachel Mesquita, Jaime Arôxa,

Carlinhos de Jesus – veneram Antonietta com a ótica de quem aprendeu da vida e da dança

com ela, testemunhando o percurso nem sempre macio de seus passos fora dos salões de

baile. Os dançarinos (amadores) e jornalistas (profissionais) Milton Saldanha e Rubem Mauro,

com a sensibilidade de quem domina as palavras em oito tempos, relatam episódios ricos de

humor e sabedoria popular. A entrevista publicada no jornal Dance em 1997, por exemplo,

é um dos grandes momentos dos 15 anos do periódico. Tem espaço na história da dança de salão no Brasil.

Antonietta foi uma missionária dos passos, das evoluções, da história dos ritmos. Suas

certezas emprestaram respeito e credibilidade à “dança a dois” entre nós. Impossível discutir

com o coração de Antonietta. Ela o colocava à frente de tudo. Coração e técnica, um escudo

intransponível. Quem podia com a notável pequena?

Por tudo isso, o que vocês têm pela frente é uma história de amor. Leiam com gosto. E

sintam-se em Versalhes, mesmo que estejam na sua querida Estudantina, dançando em uma

gafieira como se num palácio.


Depoimentos

Uma mulher que conseguiu se impor

Jaime Arôxa

Ela foi uma desbravadora

Carlinhos de Jesus

Uma grande amiga

Rachel Mesquita

Nossa família na dança e na música

João Piccoli

Minha mãe era uma sonhadora

Marco Antonio Rondon

Sua face mais forte

Rita de Cássia Rondon

Foco só na dança

Luiz Henrique Rondon

Antonietta na gafieira – um samba

A musicalidade na expressividade de Antonietta

Christina Paz

A dama da Lapa não tinha só samba e bolero na cabeça

Milton Saldanha

Pequena grande dama

Rubem Mauro Machado

Domingo com Antonietta

Francisco Ancona


Entrevista ao Dance

“Ballroom é como soldado nazista marchando. Não vai pegar no Brasil”

Milton Saldanha e Rubem Mauro Machado

Assim disse a mestra...

Maria Antonietta

 

Depoimentos
Uma mulher que conseguiu se impor

Jaime Arôxa

Antonietta, como quase todos sabem, foi minha mãe de dança, a pessoa que me

ensinou. Só quando pude ter um olhar mais abrangente sobre a dança, fui entender o

que ela representou e sua importância no cenário e na história da dança. A primeira coisa

que se deve observar é, justamente, a chave que ela foi, fazendo uma ligação entre um

momento em que a dança era muito tradicional, com seus bailes, e o que temos hoje.

Ela teve vários alunos importantes, gente famosa, intelectuais, atores, diretores de

teatro. Essas pessoas criaram uma certa mitologia em torno do pé de valsa, ideia abraçada

pelo Circo Voador, do Rio de Janeiro. O dançar junto passou a ser cult. Intelectuais e

famosos indo dançar em gafieiras como a Estudantina. Vivi isso, e foi aí que me lancei,

dentro desse ambiente que a Maria Antonietta criou. Talvez, se não fosse ela, o Rio teria

vivido sempre entre o baile de subúrbio e outras coisas da Zona Sul, com suas discotecas.

A importância dela é gigante, porque foi essa chave. Não revolucionou com um método

de dança, mas construiu um canal, tirando a dança de salão do gueto e alcançando a

intelectualidade carioca. Tornou-se, assim, uma pessoa querida, reverenciada. E ensinou,

principalmente para mim, a dança da mulher. O que vem a ser isso? No Rio a dança era

muito dos homens. “Eu conduzo, ela vai”. Não havia espaço para a mulher criar, dançar,

se expressar. A mulher era um pouco carregada pelo homem. Eu via a dança do subúrbio

como masculina em excesso. Maria Antonietta trazia a suavidade e a leveza da mulher

para a dança. Na prática, ela conduzia. Era difícil comandá-la dançando, porque tinha

muita personalidade. Sabia o que queria e desejava fazer. Tive de inventar truques para

poder conduzi-la. Mas poucos homens conseguiam com ela esse comando, porque ela

dançava de igual para igual, com eles. Tive a honra de estar frente a frente com ela muitas

vezes, e ouvia comentários do tipo “como você é criativo!”. Isso significava que eu estava

conseguindo ir além daquilo que ela estava acostumada a dançar.

Certa vez, apareceu na Estudantina um campeão de dança. A pista estava

escorregadia e ele tentou fazer show com ela. Antonietta alertou que estava perigoso,

ele não ligou e foi em frente. Lá pelas tantas ela largou o apoio e o cara se estatelou no

chão. “Eu não te falei?”, disse ela.

Comparo Antonietta ao argentino Antonio Todaro, que foi um grande produtor de

tango. Ele foi a Antonietta do tango, com o mesmo tipo físico, com algumas coisas muito

teimosas, pontos de vista fechados. Ela viveu como quis. Escolheu viver daquela forma. E

acho que ela se foi naquela hora em que disseram: “Você não pode mais dançar”.

Fui um filho que sempre reconheceu o trabalho dela. E no meu entendimento,

Antonietta foi muito mais do que uma grande mestra de dança: representou a importância

que a mulher tem nesse espaço, conquistando merecido reconhecimento. Num mundo

tão machista, numa época difícil como aquela em que ela viveu, amazonense, com oito

filhos, tão pequenina, enfrentando tantas dificuldades. E conseguiu se impor. Foi uma

das grandes mulheres brasileiras.

Foi velada no centro da pista da gafieira, onde dançou e rodopiou. Eu tinha pouco

tempo para encontrar Antonietta, agora tenho muito mais. Porque ela estará sempre

onde eu pensar nela. Não precisa mais de avião, carro, ônibus. Estará comigo onde eu

pensar. Agora é uma luz.

 

Ela foi uma desbravadora

Carlinhos de Jesus

Maria Antonietta Guaycurús... isso é sinônimo de dança. Hoje, qualquer profissional

de dança deve muito a essa figura. Por tudo o que ela realizou como grande desbravadora.

Se há alguns poucos anos a gente ainda sofria quanto ao preconceito, ao estigma que a

dança de salão carregava, imaginem na época de Antonietta.

Uma mulher que veio do Norte do país, com a ideia da dança popular. Enfrentou,

desbravou e quebrou muitas barreiras. Já a reverenciávamos em vida, devemos deixar

isso bem claro. Considero Antonietta um grande pilar. Uma figura muito doce, muito

frágil e ao mesmo tempo forte. Frágil, porque tinha as emoções, as dificuldades dos

relacionamentos, inclusive namoros. Já fui muito travesseiro da Antonietta, ouvindo

algumas desilusões, desenganos, tropeços. E também muitas lamúrias sobre sua vida, de

não ser tão compreendida. E mulher forte, porque ela também era o travesseiro, o divã

de muitos de seus alunos. Lidava com pessoas cultas e ignorantes, situações e problemas

alheios. Com sua delicadeza, sempre tinha uma palavra amiga. Sempre procurava

solucionar a vida das pessoas. Se você precisava de alguma coisa, ela tirava seu único real

do bolso e lhe dava cinquenta centavos. Uma pessoa humana, incrível.

Uma mulher que não tinha uma cultura tão grande, perto de muitas pessoas com

quem lidava. Mas ela sentava e discutia de igual para igual. Atribuo isso a uma luminosidade,

à leitura que ela praticava e à convivência, o querer aprender, o querer viver. Ela sempre

quis viver intensamente tudo, todos e aquilo que a cercava. Isso a tornou uma pessoa

afável, querida, e uma grande mulher, que unia o frágil e a fortaleza de mulher numa

única pessoa. Com um metro e meio de altura, vez por outra se transformava numa

gigante de três metros, com coração e sabedoria.

Eu tive o grande prazer, e acho que foi privilégio de poucos, de ter convivido com

ela e desfrutado da companhia e das histórias da Maria Antonietta. Levei inclusive minha

mulher, a Rachel, para fazer aulas com ela. Num dado momento ela precisava de um

partner e tive o privilégio de ser o escolhido, diante do universo de pessoas da dança que

estavam na frente dela. Certamente ninguém diria não a uma parceira como ela. Foi num

projeto chamado “Palco sobre Rodas”, bem no início da minha carreira, início dos anos

1980, antes do Estandarte de Ouro (de 1985).

Não fui aluno de Antonietta. Se tivesse sido, certamente teria outra cabeça e outra

formação, e talvez fosse até melhor do que sou. E teria me tornado um profissional de

dança bem antes. Desta vida, só vou levar aquilo que trago dentro de mim. Não resta

a menor dúvida de que ela foi uma referência. Ao repetir que não fui aluno de Maria

Antonietta, não estou de forma alguma desmerecendo sua memória. Acho até que tive

privilégio ainda maior, que foi ser escolhido para seu parceiro durante um período.

Foi uma experiência maravilhosa. Eu já dançava quando ela me conheceu. Era o

cara do chapéu, com calça de linho, como os malandros da época de meu pai. Eu só

não passava a calça embaixo do colchão, como vi meu pai fazer, porque isso era coisa da

antiga, como goiabada cascão em caixa de madeira. Usava calça de boca fechada, com

prega, bainha inglesa e chapéu Panamá. Ela já me conhecia a distância.

Na primeira vez em que convidei Antonietta para dançar, ela recusou. Foi no salão

do Elite. Cheguei na frente dela com minha calça Saint Tropez, de cintura super baixa,

boca de sino enorme, cinto largo, sapato de verniz com plataforma dupla, camisa social

de manga dobrada, como era moda, e cabelo black power. Eu era um passarinho fora do

ninho, todo mundo me olhando. Até que tocou um samba, não lembro qual, e fui até a

mesa de Antonietta, que estava com um leque na mão. Estendi a mão para ela e propus:

“Vamos dançar...”. Ela parou de se abanar, fechou o leque e me examinou de cima a

baixo. Voltou a abrir o leque e falou: “Desculpe, estou muito cansada, acabei de dançar

agora. Me perdoe, mas não quero dançar”.

Ela não acreditava que eu dançasse. Parei, fui para o bar, dividi uma cerveja com

um amigo e fiquei olhando qual mulher dançava bem na gafieira. Aí vi uma negra linda,

corpo bem acentuado, com uma saia branca com um rasgo atrás, que deixava quase

expostas suas pernas bem torneadas. Quando ela parou de dançar, fui lá e convidei. Por

sorte tocou um bom samba. Dei a volta no salão, parei em frente da mesa da Antonietta,

e ali comecei a evoluir: toda a malandragem do subúrbio. Malandragem de Celsinho, Piti,

Dominguinhos, Esquerdinha, Bolinha, Mário Jorge, Trajano. Alguns deles já falecidos. Eram

as pessoas que eu via nas pistas de dança. Passei por ali e dei uma esnobada, como quem

diz “Tá vendo, eu sei dançar”.

Nunca mais vi Antonietta. Anos depois, eu já trabalhando e namorando a Rachel,

em 1981, ela me convida para uma festa, onde estava Antonietta. Nesse encontro casual

recordamos alegremente o episódio em que ela me recusou a dança. Rimos, e aí ela disse:

“Agora vamos dançar!”

O fato seguinte, e de extrema relevância na minha carreira, foi minha participação

com ela, como convidado, num espetáculo dirigido pela bailarina e coreógrafa Regina

Miranda. Eu já dançava nos palcos, mas esse foi o momento em que tive a percepção

de que poderia dançar também fora do mundo da dança de salão e dentro de novos

horizontes. É muito importante frisar isso. Tudo bem, o convite foi da Regina Miranda,

na sua companhia de grande prestígio, a “Atores Bailarinos do Rio de Janeiro”, mas Maria

Antonietta foi quem me permitiu esse desbravar.

 

Uma grande amiga

Rachel Mesquita

Conheci Antonietta no Circo Voador, em 1992. Eu vinha do interior e não sabia

quem ela era. Ela me olhava muito. A gente entende que existe alguma coisa quando isso

acontece. Antes de me dirigir a ela, porque também uso muito da transparência com as

pessoas, ela me perguntou, com aquele jeito dela: “De onde você veio? Quem é você?”.

Respondi, “Vim de Volta Redonda. Por quê?”. E ela: “Porque gosto do seu jeito de dançar!”.

E ali a gente começou a conversar, estreitando laços afetivos e compromissos em

relação ao estudo da dança de salão.

Maria Antonietta tinha uma série de conhecimentos reais, vividos, que eu não

tinha. Mas eu tinha uma curiosidade muito grande, então, todos os assuntos que ela

me apresentava aguçavam minha vontade de aprender. E passei a ver, naquela época,

determinadas coisas que, talvez, outras pessoas não conseguissem perceber. Passei a ver

a dança de salão com os olhos dela. Só que o nosso olhar, com o tempo, se diferenciou.

Ela tinha sempre uma grande paixão ao falar sobre a dança; eu tinha um olhar crítico. Um

policiamento permanente em relação às coisas que eram ditas por ela.

Com o tempo, passei a precisar mais dela do que ela de mim. Em alguns trabalhos

que fiz para a Globo, por exemplo, pediam a polca brasileira e a valsa vienense. Minha

fonte de consulta, sobre a forma de dançar, era ela, com quem eu tinha sempre muito o

que aprender. Um detalhe interessante é que ela se interessou por mim porque, naquele

tempo, como ela, eu era uma das poucas mulheres que sabiam dançar como cavalheiro.

Dançava assim em classe e em alguns bailes. Em alguns, como na Estudantina, eu era

barrada. Mas a Antonietta fazia isso e ninguém ousava barrá-la.

Em 2000, fizeram uma grande festa para ela na Estudantina. Naquela noite ela

me fez a maior homenagem que recebi na dança de salão: disse, em público, que

poderia morrer em paz porque já tinha alguém que poderia substituí-la. Num momento

fiquei deslumbrada. Minha autoestima, minha vaidade, tudo isso me deixou transitando

nesse elogio de uma forma especialíssima. Mas depois me dei conta de que era uma

responsabilidade muito grande, que não poderia ser atribuída a mim. A história era

dela. Mas meu pensamento, e que venho difundindo sempre que posso, é que todos

somos construtores dessa obra, embora ela e outras pessoas tão importantes tenham

estruturado a dança de salão.

Um pensamento que preservo, em sintonia com o que ela dizia, refere-se ao medo

da descaracterização na dança a dois pelo excesso da modernidade. Os passos têm de

evoluir e acompanhar o contemporâneo, mas ao mesmo tempo algumas questões não

podem ser deixadas de lado, que são os elementos básicos dos ritmos. Não somos contra

a variedade dos passos, mas, sim, contra a deformidade.

Para finalizar, quero contar um episódio engraçado que testemunhei. Carlinhos de

Jesus, ao contrário de Jaime Arôxa, não foi aluno de Antonietta. Mas ela vivia dizendo o

contrário. Como achava o Carlinhos sensacional, era talvez uma forma de se valorizar.

Mas como o Carlinhos sempre negava isso, ela desenvolveu por ele uma relação de amor

e ódio. Ao mesmo tempo que admirava, chamava de ingrato. Até que certo dia, numa

festa, com grande generosidade Carlinhos falou ao público: “Agora vou chamar minha

grande mestra – Maria Antonietta!”. Eu estava ao lado dela, na mesa. Ficou radiante.

Nunca vi Antonietta tão feliz.

 

Nossa família na dança e na música

João Piccoli

Nesse tempo todo em que convivo com dança, desde meus 7 anos de idade – estou

com 43, e há 15 como profissional nessa área – o que testemunhei é que muita gente se

aproximou de Maria Antonietta e soube aproveitar bem isso. E num período em que a dança

não tinha essa importância tão grande quanto na fase pós-Antonietta. Não estou dizendo

que ela foi a responsável pela dança de salão no Brasil, mas foi um ícone que colocou essa

arte na mídia. E durante um período ditatorial. Ver uma mulher, sozinha, dando aulas de

dança, foi fantástico naquela ocasião, década de 1970, quando começava a emergir uma

geração nova no meio. Gente que dizia “o Brasil existe, estamos aqui”.

Poucos sabem disso, mas há 25 ou 30 anos, ela ia bastante do Rio para São Paulo,

para dar aulas de dança na USP. Não era conhecida só no Rio. Foi também dar cursos em

Brasília, Recife e outras cidades. Com isso, abriu portas para muitas pessoas seguirem esse

caminho. É um legado de Maria Antonietta.

Sou sobrinho direto da mestra, filho da Maria de Lourdes, a irmã gêmea dela,

que também faleceu em 2009. Fiquei um período afastado da dança, e certamente no

melhor período, do final dos anos 1970 ao final dos 1980. Foi quando a dança de salão se

consolidou definitivamente. O que aconteceu depois foi novos profissionais aparecerem,

no rastro de um trabalho precursor, em que Antonietta teve forte influência e participação.

Todos os projetos que aconteciam no Rio – em TV, rádio, jornais, órgãos públicos,

bem como nas casas de dança – tinham a presença, na vanguarda, de Antonietta. Isso teve

um peso muito grande. E, de lá para cá, tudo o que aconteceu é o que chamo de pós-Maria

Antonietta. Despontaram o Carlinhos de Jesus, que tem sua própria história, mas esteve

ao lado dela. O Jaime Arôxa, que começou efetivamente ali, chegou a morar na casa dela,

depois foi construir sua biografia. Outros, boas pessoas, que não tomaram a carreira a sério

e seguiram outros rumos. E, quase no final, algumas pessoas da família. Comecei a ajudála

no prédio da Avenida Mem de Sá, 253. Antes ela morava numa quitinete, na Rua dos

Inválidos, 185. Havia muitos alunos, ficavam no corredor esperando a vez.

Meu primo Artur, que já faleceu, esteve ao lado dela o tempo inteiro. Cheguei

depois, mas sempre estive ligado à música, adoro sambar, toco bateria, percussão. Minha

mãe também era musicista, pianista e tecladista. O tio de minha mãe era baterista e

cantor. Antonietta tocou violino, depois largou. Vejam que a família inteira era assim,

envolvida com música e dança. Não tardou e integrou-se uma segunda prima, a Ana

Cristina, que gosta de dançar e é muito capaz. Só que não conseguiu se estabelecer

naquele período. O último do clã Antonietta que aderiu à dança foi o Francisco, que

hoje mora em Friburgo. Posso garantir que toda a família dança, e alguns se tornaram profissionais.

Minha tia foi uma contestadora, sempre muito durona. Tivemos algumas

discordâncias, inclusive, em assuntos de dança, mas no seio da família, ela foi sempre

uma pessoa extremamente agradável e alegre. Gostava de jogar um baralho invocado,

e aí sim a briga era feia. Apontaria como sua maior qualidade a transparência, de uma

pessoa muito sincera. O que faltou a ela, e isso é típico do artista, foi tino comercial.

Poderia ter tido a maior academia de dança do Rio de Janeiro.

 

Minha mãe era uma sonhadora

Marco Antonio Rondon

Sempre gostei de ver dança, mas minha vida se projetou para outro lado. Tornei-me

mecânico de aviação. Trabalhei na Varig durante 33 anos e me aposentei em 2008. Sou o

chamado pé duro, aqui os neurônios não casam muito bem com passos de dança. Mesmo

assim, aos 56 anos, estou tentando aprender, fazendo aulas com uma ex-aluna de minha mãe, Maria Antonietta.

Sou o filho mais velho de oito irmãos e, como ela tinha de sair para trabalhar, eu

ficava tomando conta de todos e da casa. No começo ela deixava as refeições prontas,

depois passei a fazer. Eu tinha de me virar, só não lavava roupa, e isso só melhorou

quando minha irmã Rita cresceu e passou a ajudar.

Minha mãe era uma sonhadora. Nunca soube ganhar dinheiro. Faltou pensar no que

seria seu futuro. Tinha um salário mínimo de aposentadoria. Os alunos foram diminuindo.

Precisou da ajuda dos filhos para comprar remédios e para outras necessidades. Quando

a gente falava, ela desconversava, “não é assim”, dizia. Tentamos levá-la para morar com

a gente, arrumamos uma casinha para ela, e só foi depois de muita insistência. E mesmo

assim quando seu estado de saúde, com problemas cardíacos, realmente se agravou.

Seus últimos 15 dias, lá conosco, foram muito tranquilos.

Ela se recusava a parar de dançar, e dizia que sem a dança morreria. Passei a levá-la

na Estudantina, onde encontrava os amigos. Teve um dia em que tive de falar muito duro

com ela, para contê-la: extremamente fraca, queria sair dançando.

 

Sua face mais forte

Rita de Cássia Rondon

Também danço, adoro! Não profissionalmente, só por diversão. Aprendi com nove

anos de idade, junto com um de meus irmãos, o Artur. Eu era tão pequena, que nem

lembro como aprendi. Mamãe dava aulas particulares em casa. Eu via isso, e agora estou

com 52 anos. Percebam quanto tempo ela trabalhou com dança.

Aprendi só de olhar. Quando ela ia passar algum passo novo para o aluno, nos

pegava para servir de exemplo. Costumávamos ir a um clube social perto da nossa casa,

em Nova Iguaçu, que fazia bailes com grandes orquestras. Antonietta dava aulas lá

também, mostrando comigo e Artur. Era uma coisa incrível.

Éramos na infância grandes dançarinos. Na adolescência larguei, fui trabalhar no

comércio de confecções, isso me dá prazer, enquanto o Artur continuou e começou a

se profissionalizar. Na verdade, mesmo amando dançar, curto pra caramba um baile, mas

nunca quis trabalhar com dança, não gosto.

Envolvida num casamento malfeito, que não dava certo, mamãe teve de ir à luta

e decidiu fazer aquilo de que mais gostava, que era trabalhar com dança de salão. A

propósito, antes do nosso pai ela teve um casamento. No total, casou três vezes.

Foi na fase final, na velhice e na doença, que ela mostrou a face mais forte da

sua personalidade. Teimosa, resistiu muito à insistência dos filhos em levá-la para morar

juntos, em Nova Iguaçu. Passando muito mal, a gente querendo fazer alguma coisa, e

ela dizendo que não estava sentindo nada. Dizia que era problema de coluna, mas na

realidade estava enfartando. Na verdade, não queria se afastar do seu mundo, onde

sempre foi muito feliz.

 

Foco só na dança

Luiz Henrique Rondon

Morando na Baixada Fluminense, eu ia poucas vezes à casa da minha avó, Maria

Antonietta. Em geral, só aparecia quando havia festas. Certo dia, ela me convidou a

aprender a dançar. Havia muito mais mulheres do que homens na dança, então eu ia

lá para ajudá-la, nas aulas que ministrava na Estudantina e na Ilha do Governador. Ela

sempre me elogiava, comparando-me ao meu padrinho, o Artur.

Isso durou uns seis meses, e foi a época boa em que mais vivi com ela. Ajudou-me

muito, em vários sentidos, principalmente com seus conselhos de pessoa experiente.

Hoje tenho muito orgulho da minha avó. Ela não ganhou dinheiro, e nem pensava nisso,

seu foco estava todo na dança. Mas viveu muito bem, feliz até o último dia de sua vida.

Maria Antonietta deixou uma obra para o Brasil e ensinou muita gente, impossível

quantificar. Fui morar em Miami e até lá encontrei gente que ela ensinou a dançar.

 

Antonietta na gafieira – um samba

Antonietta no boogie ou no tango

no mambo, jambou cha-cha-cha

é frevo, é choro, é no fox-trote

no xote, baião, lundu, no maracatu

nas habaneras, boleros, no roquinrou,

batuque, coco, hino, e-baburiba, soul

maxixe, polka, quadrilha, forró

– pra ela tanto faz

na influência do jazz, rapaz

Antonietta é do samba-lelê

das folias de reis, de afoxés .

Antonietta é do boi de mamão,

da maruja, dos ticumbis e dos pastoris,

da capoeira, cambinda, bumba meu boi,

do fado, vira, fandango,

do caboclim.

– Se Javier com um quente,

ai meu Deus, não há Cugat que aguente!

(Também assim já é demais Antonietta)

Maurício Tapajós, Aldir Blanc e Paulo Emílio

 

A musicalidade na expressividade de Antonietta

Christina Paz

Em meados do ano 2000, fui apresentada à Antonietta pelo professor de tango e

DJ Márcio Carreiro, amigo e coordenador do repertório de meu CD, intitulado Dançando

no Salão. Dentre as suas sugestões de músicas que comporiam o disco, uma já era mais

do que certa: Antonietta na Gafieira, da autoria de Aldir Blanc, Maurício Tapajós e Paulo

Emílio, uma homenagem à nossa mestra, ainda em vida.

Logo na primeira oportunidade, após receber o CD finalizado, fui até a casa de

Antonietta para lhe mostrar o trabalho. Fiquei entusiasmada em conhecê-la mais de perto,

pois já sabia de sua fama, prestígio e genialidade. Confesso que fiquei meio receosa se

iria gostar de minha versão no disco. Ela já conhecia aquela original dos compositores,

com solo vocal do próprio Aldir e do Tapajós. Minha intenção, e do Márcio Carreiro, era

justamente prestar também nossa homenagem a ela, divulgando e exaltando sua figura

como Mestra. Para minha grande surpresa, ela balançou a cabeça e sorriu como quem

aceita com muita satisfação um presente especial. Realmente, adorou. Foi nesse exato

momento que comecei a notar a genial musicalidade na sua expressividade, o ouvido

sensível que possuía. Permaneceu descrevendo e analisando os arranjos com propriedade,

elogiou fraseados, percebeu instrumentos e improvisos; cada instrumento vindo em

sequência, os metais, as cordas, nada lhe passava despercebido. E seguia comentando:

“Que maravilha! Linda frase de improviso!”. De fato, isso me surpreendeu bastante, uma

vez que não é comum encontrar pessoas com percepção musical tão apurada, ouvido tão

pensante musicalmente. Sem mesmo notar, ela me mostrou isso. Achei interessantíssimo

o que me disse e, ali, me tornei mais ainda sua fã.

Após saborear ampla, irrestrita e calmamente cada compasso de sua música, passou

a andar com o CD a tiracolo. Cada vez que chegava nos bailes pedia para tocarem Antonietta

na Gafieira. Fomos juntas a alguns eventos de dança. Lembro-me de que presenciei um

momento bem especial e emocionante, em janeiro de 2001, numa festa de aniversário

em famosa casa noturna do Rio: dançou com um dos seus habituais parceiros ao som da

própria música dedicada a ela. Sons daquela canção se perpetuarão em nossos ouvidos,

com imagens de passos que se eternizarão num instante mágico de um talento sem igual.

E foi assim, por meio da sua música, que Antonietta e eu nos aproximamos mais.

Passamos a nos falar bastante por telefone, principalmente depois que me mudei para

São Paulo. Quase todas as vezes que ia ao Rio, uma visita a ela era sempre certa para levarlhe

mais CDs de presente, e algumas vezes até assistia às suas aulas.

Outro fato curioso foi quando recebi o convite da TV Globo para ir ao Programa

do Jô, em abril de 2001, para lançar o CD Dançando no Salão. É claro que a música

escolhida para apresentação foi Antonietta na Gafieira. Não seria diferente! Convidei-a

para ir comigo e minha banda, do Rio para São Paulo. Não aceitou porque não viajava de

avião de jeito nenhum. E me afirmou que só iria se fosse de táxi... Imaginem, 900 km de

táxi, entre ida e volta. Eu não tinha nenhum patrocínio para pagar isso. Quem acabou indo

comigo, por sugestão dela mesma, foi seu sobrinho e meu amigo, João Piccoli, também

professor de dança de salão.

Antes de gravar o CD fui pedir autorização aos compositores para incluir a música.

Eles prontamente autorizaram e me liberaram de qualquer ônus financeiro. O Aldir Blanc

me disse: “Se é para a Antonietta, é de graça. Ela merece tudo!”. Procurei os herdeiros dos

outros parceiros e eles tiveram a mesma atitude.

Durante a infância, Antonietta teve contato com um instrumento agudo de cordas,

o violino. Mas não continuou os estudos, ao contrário da irmã gêmea, Maria de Lourdes,

que se tornou pianista/tecladista profissional. Maria de Lourdes morreu em outubro de

2009, seis meses depois de Antonietta. Mesmo assim, longe do violino, Antonietta não

deixou anular em si essa imprescindível referência musical, que se tornou parâmetro

fundamental para ela e para a arte a que se dedicaria em toda a sua vida.

Entre os vários papos que tivemos, conversamos sobre os gêneros musicais do

final do século xix e começo do século xx, ligados à História da Música Brasileira. A cada

termo, Maria Antonietta me surpreendia. Uma terminologia muito peculiar e diferente,

que usava como dançarina e professora, no que se referia à música que ouvia e dançava.

Eram exatas e impressionantes suas observações.

Ao falar de chorinho, lundu, polca e outros gêneros, eu percebia que o seu

conhecimento de prática musical na dança era imenso; conceitos dos arranjos e

sonoridade, pertinentes ao enfoque original da estética daquela época. Incrível mesmo!

Não falo somente dos timbres, das divisões rítmicas, das frases que percebia, mas também

da dinâmica, expressividade do contexto sonoro: nada escapava à aguçada percepção da

mestra – nenhum ritenuto, nem fermata, tampouco sforzando. Isso tudo me encantou.

Eu não tinha noção de que o seu ouvido fosse tão pensante, como disse anteriormente.

Musical e inteligente. A genialidade dela era, nesse aspecto, absorver, ouvir o que está

soando, raciocinar e criar em cima disso, expressar-se, fazer realmente esse link, essa

junção, dos sons, timbres, fraseados musicais, improvisos, deixando fluir e expressando

isso tudo nos seus movimentos.

Acrescento, a tudo o que já disse, a simpatia dela. Sempre muito alegre, afinada

com a atmosfera em que vivia. Uma mulher de bem com a vida e com sua arte. É

privilégio nosso a brasilidade da mestra. O Brasil tem Chiquinha Gonzaga na música e

Maria Antonietta na dança.

 

A Dama da Lapa não tinha só samba e bolero na cabeça

Milton Saldanha

Militante do Partido Comunista, em anos de dura repressão ao livre pensamento, a

pequenina Maria Antonietta era mais corajosa do que muito marmanjo metido a besta:

enfrentou os cassetetes e bombas de gás da polícia em manifestações de rua, duramente

reprimidas na histórica Praça Tiradentes, no Rio.

É indispensável contar isso para ninguém pensar que naquela cabecinha só havia

samba e bolero. Muito pelo contrário, Maria Antonietta era bem informada, articulada,

politizada, apreciava leitura, gostava de História, principalmente quando se referia à sua xará

das cortes francesas que acabou na guilhotina. E foi graças a essa formação cultural não

formal, de autodidata, que se expressava com desenvoltura e, não raro, cativante brilho.

Eu já tinha ouvido falar dela, da lenda em que se transformou na dança de salão e

nas gafieiras cariocas, mas só fui ter o primeiro contato pessoal quando ela me recebeu

em seu apartamento, na Lapa, numa manhã de abril de 1997, portanto há mais de 12

anos. Eu tinha ido ao Rio especialmente para entrevistar a grande dama dos salões

cariocas. Voltei com uma palpitante e polêmica entrevista que rendeu a matéria de capa

do jornal Dance, de 26 de maio daquele ano.

Algumas pessoas, principalmente Jaime Arôxa, tentavam divulgar o ballroom em

nosso país. O título da entrevista, reproduzida na íntegra neste livro, só para se ter uma

ideia do tom geral, foi uma das frases de Antonietta: “Ballroom é como soldado nazista

marchando. Não vai pegar no Brasil”. Acho que nem preciso dizer a celeuma que deu.

Fomos para os históricos Arcos da Lapa, sob um sol escaldante, ela toda produzida

com roupa de baile de gala, e ali assentei a máquina no tripé e bati dois rolos de filmes

para a capa, e agora também deste livro. Escolhida para homenagear Maria Antonietta

porque congelou um momento da sua natural vaidade feminina e da felicidade que ela

irradiava, combinando com aquele cenário de Rio Antigo tão belo.

 

Pequena grande dama

Rubem Mauro Machado

Certa vez Maria Antonietta me disse:

“Eu nunca recuso um cavalheiro que venha me tirar num baile,

mesmo que ele não saiba dançar. Pelo menos uma música eu vou dançar

com ele. Uma dama nunca deve dizer não a um cavalheiro, a menos que

ele esteja bêbado”.

Atitudes como essa é que faziam dela um exemplar raro dessa espécie cada vez

mais em extinção, chamada “dama”. Nos tempos atuais, de brutalidade nas relações

sociais, em que dama e cavalheiro parecem ser apenas indicações pregadas nas portas

dos banheiros e não símbolos de refinamento (nos bailes e fora deles). Antonietta fazia

questão de ressaltar: dançar bem (coisa que fez como poucos) não basta; é preciso ser

também cordial e solidário com o próximo. Essa postura, possivelmente, derivasse de

suas convicções socialistas, que nunca escondeu. Apesar de ter feito nome como mestra

e dançarina, morreu pobre. Mas encontrou na dança a sua forma de ser feliz e, talvez, isso lhe bastasse.

Gostava de contar como, mocinha, teve de mentir a idade para poder frequentar a

famosa Academia Moraes, no Rio de Janeiro, onde depois se tornou instrutora. Partilhou

sua arte com alguns dos maiores nomes da dança de salão brasileira. A perda recente de

um filho foi mais um golpe duro; nem assim se deixou abater. Nos últimos tempos, mesmo

doente e alquebrada, aparecia nos bailes, especialmente na sua amada Estudantina da

Praça Tiradentes, onde dançava um ou dois boleros, antes de voltar para casa, situada não muito longe.

As pessoas passam, o exemplo permanece. A dança de salão brasileira não vai esquecer Maria Antonietta.

 

Domingo com Antonietta

Francisco Ancona

Eu a vi apenas uma vez. Foi num domingo úmido do verão de 2008. Maria Antonietta

passou algumas horas a bordo do Costa Magica, atracado na Praça Mauá, coração do seu

Rio de Janeiro. Convidada de honra para um encontro com cerca de cinquenta profissionais

da dança de salão, que protagonizariam por uma semana o cruzeiro Dançando a Bordo, ela

se produziu como se fosse brilhar em mais um dos milhares de bailes de que participou. E assim foi.

No banco do passageiro do táxi, a caminho do seu modesto apartamento na região

central da cidade, fui me informando com Monica Steinvascher sobre a notável figura.

Soava-me familiar, tinha ouvido falar dela, mas confesso que não enxergava nítida sua

relevância para o mundo da dança de salão brasileira. Maria Antonietta era uma novidade para mim, quanta ignorância...

Apenas 15 minutos mais tarde, acessando o navio, eu já tinha claro que estava ao lado

da rainha das nossas pistas e salões. Falava muito, e rápido. Construía discursos sensatos e

espontâneos, com densidade de rio em cheia. Seus oitenta anos de vida passaram voando

por mim, pelas ruas desertas da antiga capital, no curso de uma corrida de táxi. Já sabia,

então, de muitas coisas de sua vida: alegrias na dança, discípulos, dores, dramas familiares,

vitórias contra doenças, costumes e códigos dos bailes de ontem e de hoje.

Ao ingressar no átrio, suas antenas sintonizaram de pronto na valsa que Cristovão

Christianis e Katiuska Dickow ensinavam para mais de sessenta turistas em férias. Percebi,

então, seu instinto musical: em frações de segundos captou o momento da aula, os passos

que o virtuoso dançarino dava com sua parceira, a atenção dos alunos, tudo. E, num átimo,

invadiu a pista, apresentando-se para a função. Surpreso e feliz com a inesperada visita,

Cristovão fez-lhe reverência, interrompeu a aula, gaguejou poucas frases, puxou aplausos

da curiosa plateia. Ela então tomou a palavra, agradeceu a atenção, e se propôs a dar

alguns passos de valsa. Delírio. Conquistou a atenção de todos com a velocidade da luz.

Percebi que cochichava enquanto evoluía lépida ao som da valsa. Curioso, subindo para o

restaurante onde almoçaríamos, tive a ousadia de perguntar-lhe o que dizia a seu discípulo.

“Muito simples, meu filho. Ele precisa corrigir a posição do braço. De valsa eu entendo”.

Quanto talento para ensinar! E que respeito pelo profissional de dança. Ninguém

se deu conta da correção na postura que ela tinha detectado necessária, e transmitido

com sutileza.

Após o almoço, pausa para sessão de fotos e gravação de depoimentos em vídeo.

Contou por quase uma hora novas e velhas histórias. Eu, àquela altura, já me sentia seu

biógrafo, tanto sabia dela. Ao seu lado, a atenta Fabiana Terra escutava, concordava

(inevitável) e intervinha quando possível (raras vezes). Esse depoimento precioso, aliás, já

foi editado e copiado, e também exibido e distribuído em eventos da Costa Cruzeiros. Um

carinho do jornal Dance e da Costa Cruzeiros para com a memória da nossa dança de salão.

Pouco antes de o navio zarpar, a equipe de professores do navio assistiu à

emocionante introdução de Rachel Mesquita, herdeira moral do legado de Maria

Antonietta. E teve, então, o privilégio de absorver letra por letra, gesto por gesto, do

que esta levava dentro de si como ninguém: um incondicional amor pela dança de salão,

atividade para a qual exigia respeito e reconhecimento.

Através dos janelões do Costa Magica, eu levei meus olhos marejados até o horizonte,

percorri a ponte Rio-Niterói e me fixei na emblemática Ilha Fiscal, onde aconteceu o último

baile da corte no Brasil. Nunca mais veria Maria Antonietta. O baile continua.

 

Entrevista ao Dance

 Ballroom é como soldado nazista marchando.
Não vai pegar no Brasil.”

A entrevista a seguir, aos repórteres Milton Saldanha e Rubem Mauro Machado, foi

publicada no jornal Dance, de 26 de maio de 1997 e mostra o lado polêmico de Maria

Antonietta. O texto foi mantido no original da época, sem atualização de dados.

Aos 70 anos, completados dia 15 de maio, e depois de ter vencido um câncer, Maria

Antonietta continua com uma vitalidade incomum: dança e dá aulas de dança, curte os

bailes de gafieira do Rio de Janeiro, tem um namorado bem mais jovem, e preserva sua

vaidade. Ao posar para a foto da capa desta edição do Dance, junto aos históricos arcos da

Lapa, pertinho de sua casa, numa região boêmia que deixou muitas lendas, fez questão de

estrear seu último vestido de baile, criado para sua festa de aniversário. Ao lado de tudo

isso, fala sem parar, com facilidade de expressão e riqueza de vocabulário surpreendente

para uma pessoa que só cursou o antigo primário. Nessa entrevista, obviamente resumida

para publicação, ocupou mais de uma fita de gravador, num depoimento dinâmico, agora

incorporado ao acervo de documentos sonoros do jornal.

Com 1,50 m de altura e magra, a fortaleza de Maria Antonietta parece fugir da

falta de espaço físico para irradiar-se em sua volta. É impossível não se absorver sua

energia positiva, sua vontade e prazer de viver, sua explosão de palavras e gestos que

transformam uma mulher pequenina e de aparência frágil numa dama poderosa e temida

por sua franqueza e seu senso crítico, embasados em indiscutível conhecimento técnico

e sensibilidade estética.

Mas quem é, afinal, esta mulher que hoje tem seu nome homenageado em duas

escolas de dança de salão, uma em São Paulo e outra no Rio; é tema e personagem de um

documentário atualmente em fase de edição, produzido por um famoso cineasta, nada

menos que Silvio Tendler; nome do salão de uma das mais tradicionais gafieiras cariocas,

a Estudantina; musa inspiradora do maestro Guerra Peixe; tema de um livro a ser lançado

brevemente, sobre sua vida, escrito pela jornalista Tereza Drummond, com prefácio de

Glória Perez; detentora de uma medalha de ouro outorgada pela Unesco?

Maria Antonietta foi a precursora desse movimento de dança de salão que hoje

curtimos, dividindo espaço na história com a célebre Madame Poças Leitão, que desejou

conhecer mas não teve chance. Madame, que na verdade foram duas pessoas, não está

mais entre nós. Maria Antonietta aí continua, e vai continuar por longo tempo, como a

grande mestra dos mestres que já se consagraram, sendo expoente Jaime Arôxa, estrela

que ela esculpiu com refinamento.

Deixemos que Arôxa conte mais:

Ela foi o elo de ligação entre o passado e o presente, pois em uma

época em que as danceterias proliferaram, promovendo o afastamento

dos pares, foi ela a responsável pelo resgate da importância da dança de

salão. Não bastasse esse fato, ela também representa, na sua essência, a mais viva expressão da dança.

Dance: Como tudo começou?

Antonietta: Perdi meus pais aos 11 anos. Fiquei com os avós paternos e aos 13

anos mudamos de Manaus, onde nasci, para o Rio. Éramos seis irmãos e as dificuldades

financeiras imensas, porque meu avô estava aposentado, sustentando os netos, uma

filha solteira, e um filho casado e desempregado. Tive que começar a trabalhar mais

cedo. Ele morreu e ficou só minha avó. Fui garçonete, operária de uma fábrica de roupas,

empregada doméstica. Num belo dia, quando eu já estava com 17 anos, lendo o Jornal

do Brasil vi um anúncio da Academia Moraes de Dança de Salão, pedindo moças maiores

de 18 anos que quisessem ser profissionais de dança.

Dance: Essa academia foi famosa...

Antonietta: Era a única que existia. Faltavam só 15 dias para eu completar 18

anos, então me arrumei toda e me mandei. Quando cheguei lá, havia umas 30 ou 40

candidatas, todas muito bonitas, e a maioria pensando que se tratava de um cabaré,

porque o anúncio não tinha especificado que o cargo era de “auxiliar de ensino”. Foram

fazendo o teste e o Moraes mandando embora. Sobrei, com mais cinco moças. A mulher

dele era muito ciumenta e percebeu que ele se concentrava nas mais bonitas, mais

vistosas. Eu era muito miudinha, não tinha cara de mulher nem de menina, nem busto

tinha. Então ela falou “olha, pega a mocinha ali, ela está perdendo tempo, sentada”. Eu já

dançava muito, nos clubes, nos frevos, nas tardes dançantes. Moraes fez o teste e gostou

da minha dança. Realmente, eu tinha prática, só não tinha técnica.

Dance: Ele foi o seu mestre...

Antonietta: Um grande mestre. Era o único na época, anos 1950, e tinha cinco

academias no Rio. Na verdade, comecei com ele quando tinha só uma, nos anos 1940.

Quando decidi sair, ele quase teve um treco. Arranjei um namorado, Lorival Rondon, que

se tornou pai dos meus filhos, e que não queria que eu trabalhasse. Homem, naquela

época, era machão, mandão. Saí da academia. Vivi com ele vinte anos. Mas voltei a dar

aulas escondido. Ele saía para trabalhar e eu ia para os clubes dar aulas, lá nos subúrbios

(risos). Passei a dar aulas também em casa. Um dia ele chegou e a casa estava cheia de

homens. Ele perguntou aos meus filhos – “Escuta, vai ter baile hoje aqui, festa?” – e

eles “Não, a mamãe está dando aulas”. Quando os caras foram embora, ele veio discutir

comigo, mas avisei que continuaria e três meses depois voltei para a Academia Moraes. O

que sei hoje devo a ele.

Dance: Ficou tudo bem?

Antonietta: Bem nada. Meu marido não aceitou, foi embora, e fiquei sustentando

os filhos, só com dança. Hoje eles são três profissionais de dança, com outras profissões

paralelas. Depois tive mais dois maridos. O segundo deixava eu dançar, mas era ciumento.

O terceiro, com quem vivi 13 anos, foi quem me levou mais para cima. Os três tinham sido

meus ex-alunos.

Dance: E o Moraes, com quem aprendeu?

Antonietta: Com um professor norte-americano, em Portugal, onde havia morado

por uns tempos.

Dance: Por que as academias desapareceram?

Antonietta: Foi no auge da discoteca, no final dos anos 1960. Todas fecharam. O

Moraes e seus irmãos, que o ajudavam, já morreram.

Dance: Quando a senhora começou a ficar conhecida?

Antonietta: Sem a academia do Moraes, já no terceiro casamento, aluguei uma

salinha e comecei a dar aulas como autônoma. Aí a imprensa começou a me procurar,

porque comecei a dançar no Elite, bonito, mostrando o que sabia, com meu partner,

o Mário, ex-aluno do Moraes. Todo mundo achava uma dança diferente, mais clássica.

Porque o pessoal da gafieira dançava bonito, eram todos autodidatas, mas o que não

tinham era elegância. Então muita gente veio me ver dançar, como o Klauss Vianna, que

ficou maravilhado. Virei assunto nos grandes jornais. Mas de certo modo não era nem

por mim, eu era a última dos moicanos da Moraes e muitos queriam saber o que tinha

acontecido com ele e com as escolas. E com isso fui crescendo, porque vim realmente de

um grande mestre de dança. Dele jamais vou esquecer. É claro que cresci mais, porque se

a gente aprende bem, só pode crescer mais. Veja o Jaime Arôxa. O Carlinhos de Jesus não

aprendeu técnica de ensino comigo, foi com a Estelinha. Eu colocava o Jaime para dar

aulas, e ele foi assumindo uma técnica, e criou seu próprio estilo. Mas por quê? Porque

estava alicerçado. Se você não estiver alicerçado não vai conseguir nada. Infelizmente,

temos muitos falsos profissionais. Agora há uma pessoa querendo regulamentar a situação

de profissional de dança de salão e vou dar uma força. Temos que botar essa gente para

estudar, não só a técnica de ensino, mas a história da dança. A dança de salão também tem uma história.

Dance: Seu aprendizado teórico tem que base?

Antonietta: Dos livros, inclusive Almanaque Abril. Tenho um livro que comprei num

sebo há 15 anos, chamado Discotec, com a história dos ritmos, da dança de salão e muitas

outras coisas. É uma raridade, que não se encontra em lugar nenhum. A dança de salão

veio do minueto, da valsa vienense, do clássico. Depois da Revolução Francesa foi quando,

pela primeira vez, o homem cingiu a cintura da dama para dançar uma valsa vienense.

Foi o maior escândalo da época. Leio muito, Freud, psicologia, cinema, teatro, tudo o que

se possa imaginar. Passo os domingos lendo, principalmente sobre minha profissão. Se

amanhã tenho que dar uma entrevista, não vou ligar para Fulano perguntando “me diz aí o que posso dizer” (Risos).

Dance: Como a senhora viu a mudança e evolução da dança de salão nestes anos todos?

Antonietta: Dos anos 1970 para cá, ela mudou com a entrada de mais gente e

jovens. Surgiram novos professores, jovens e bonitos, aprendendo até balé clássico para

fazer dança de salão, jazz para poder levantar a perna, essas coisas.

Dance: Isso não é bom?

Antonietta: Salão é uma coisa, jazz e balé moderno são outras. Muda para o

exibicionismo. Estão estilizando, levantando perna, batendo no rosto dos outros.

Dance: Dança de salão é arte ou diversão?

Antonietta: As duas coisas.

Dance: Então, se é arte, não tem que mudar, incorporar coisas novas?

Antonietta: Pode mudar, sim. Mudei meu estilo de dançar e existem várias coisas

que criei. Só que não vou atrapalhar ninguém no salão. Com trezentos casais num baile,

não se pode fazer coisas de shows. No meu tempo, também havia exibicionismo, mas no

palco. Quanto ao balé, e eu trabalhei na Escola de Ballet do Theatro Municipal, ninguém,

nenhuma das grandes profissionais que conheci, aprova que um homem de 23 anos vá

fazer balé clássico. Não pode. Isso se começa com cinco ou seis anos. O que se pode fazer

é abertura, alongamento.

Dance: Como foi essa sua experiência numa escola de balé?

Antonietta: Fiz coreografia no Theatro Municipal com bailarinos, mas nunca dei

aula. Foram eles que votaram para que eu ganhasse a medalha de ouro da Unesco.

Dance: Voltando a uma das questões anteriores, por que a dança de salão cresceu tanto?

Antonietta: Por muitas razões. As pessoas andavam muito sozinhas. Marido

separando de mulher. Filho saindo de casa. Gente buscando terapia. Então é ótimo que

continue crescendo, mas sem máscara.

Dance: O meio é competitivo. O que a senhora acha disso?

Antonietta: Bom, porque aí você vai conhecer quem é o bom e quem é o ruim.

Conheço pessoas que fizeram aulas com vários chamados profissionais e estão com pé

torto, indo para o ortopedista... Vi uma vez um ortopedista falando na TV que a época

em que mais ganhou dinheiro foi na fase da lambada. Faziam aquele jogo de pescoço

sem aquecimento, a frio, sem saber como fazer. Isso é falta de conhecimento do corpo.

É preciso saber anatomia. Não é só em outras danças que há riscos. Na dança de salão

também, insisto, se você não souber pisar, se comportar, colocar sua coluna como se faz

no clássico, realmente vai se prejudicar. Mais tarde estará todo torto. Observem alguns

dançarinos da gafieira, da velha guarda. Eles têm defeitos no corpo. São curvados, porque

dançavam em má posição. Para não encostar na dama, se esquivavam.

Dance: A propósito de competição, o que se pode esperar do ballroom, que estão

tentando trazer para o Brasil?

Antonietta: O estilo do brasileiro, ou do latino-americano, jamais vai se adaptar a

esse ballroom. De pescoço duro, para cima e para baixo, fazendo pose de nazista, todo

mundo dançando duro. Não aceito! Ninguém vai me impor isso. Minha alegria tem de ser

esfuziante. Não vou dançar feito soldado alemão nazista marchando. Aqui não vai pegar,

a não ser entre pernósticos.

Dance: Além do Jaime Arôxa, que outra grande estrela passou por suas mãos?

Antonietta: Estrela, mesmo, foi só o Jaime, porque levou a sério a coisa. Tive

alunos que hoje estão dando aulas no Rio, são muito bons, como o Oswaldo. Há também

um grande professor dele, chamado Marquinhos. Mas o que mata qualquer pessoa é a

vaidade, o pedantismo. O Jaiminho, no início, começou a botar a crista no alto. Então o

chamei e disse, “olha, não é assim, você é muito bom, um grande profissional, mas não

seja muito orgulhoso nem vaidoso. Deixe que as pessoas te adotem”.

Dance: Ainda é possível alguém construir um nome sólido em dança de salão,

apesar de toda a concorrência que está aí e da proliferação de academias?

Antonietta: É, mas se tiver quem ajude, quem dê um empurrão, como outros

também tiveram. O Carlinhos de Jesus teve o empurrão da coreógrafa Regina Miranda,

aí foi dançar com a Elba Ramalho, essas coisas. O Jaime demorou muito para aparecer na

TV, mas entrou nas novelas.

Dance: De modo geral, incluindo os círculos não acadêmicos, a senhora acha que

as pessoas estão dançando bem no Rio de Janeiro?

Antonietta: Acho sim, mas insisto: o exibicionismo é que está estragando tudo.

Dance: Inibem o público...

Antonietta: Exatamente. Por causa disso as pessoas chegam nos bailes e não

querem dançar. Ficam tão irritadas, que nem se interessam mais em fazer aulas de dança.

Dance: Que riscos a senhora vê nesse pessoal que não é bem preparado e se coloca

como professor de dança? Que danos isso pode causar?

Antonietta: Tem gente que chega aqui reclamando de dores nas costas. Teve

aulas com fulano ou beltrano. Olho e comento: “Claro, você está pisando de calcanhar,

está pisando errado. Você tem que saber pisar, distribuir o peso do seu corpo. Senão

vai adquirir lordose, problemas de coluna e outros bichos mais”. Há professores brutos,

ignorantes, que jogam a dama como se fosse um saco de batatas. São analfabetos, não

conhecem nada de anatomia.

Dance: Conte-nos sobre sua doença. Como superou isso?

Antonietta: Tive câncer há 13 anos, aos 57 anos de idade. Fiquei internada no

Hospital do Câncer, todo mundo achava que iria morrer. Então proibi que ficassem

chorando perto de mim e coloquei na cabeça que iria viver. Além disso, sou muito mística.

Fiz tratamentos espirituais. Sou kardecista, sem frequentar, mas gosto de ler O Evangelho

Segundo o Espiritismo. Fiz duas operações espirituais. Então não é só a dança, é também

o misticismo que me sustenta. Acho que vou viver mais cem anos!

 

Assim disse a mestra... Maria Antonietta

Algumas frases adaptadas do documentário de curta-metragem Mestra Maria

Antonietta, produzido por Rodolfo Ancona, o Ruda, no 5º Dançando a Bordo, no navio

Costa Magica, em 2008.

Salsa não é ritmo, é tempero que você dá

ao corpo ao dançar músicas latinas.

Valsa é a coisa mais linda!

Aula de dança tem que ser dada

com amor. É o que temos que plantar.

Danço até sozinha, em casa. O samba no pé.

Quase todas as danças vieram dos negros africanos.

Não falo besteira, dou palestra até em faculdade.

Não danço gafieira, isso não é ritmo, é um lugar de baile.

Só tenho a quarta série, mas estudei e leio muito,

principalmente sobre minha profissão.

É o homem que conduz, a mulher não

pode tomar iniciativa. Infelizmente, ele quer

mandar em tudo, até quando casa.

Tive três maridos. Com o primeiro vivi cinco

anos. O segundo, pai dos meus oito filhos, era

muito ciumento, eu não podia olhar para o lado.

Aprendi muito com o professor Moraes.

(Dono da primeira academia de dança de salão do

Rio de Janeiro, onde Maria Antonietta começou)

Poucos homens conseguem passar emoção à dama. A maioria

quer aparecer mais do que ela.

Na dança a dois tem que existir emoção.

Dança é prazer e não exibicionismo.

Adoro bolero, samba canção, samba no pé.

A dança se faz da cintura para baixo,

não se joga o tórax da cintura para cima.

Só nos ritmos latinos entra o swing dos ombros.

Nasci em 1927, colocaram na certidão

1928. Foi bom, ganhei um ano.

Nasci 15 ou 20 minutos depois da

minha irmã gêmea, a Maria de Lourdes.

Ninguém tinha se dado conta que eu estava lá.

Com esse nome, tem hora que penso que sou rainha mesmo.

Só dão valor ao ser humano pela

roupa que usa. E às vezes é um canalha.

Fico contente de saber que os jovens estão

interessados na dança de salão.

Tudo eu consulto antes, nos dicionários.

O tango também veio das milongas dos negros.

Nós, brasileiros, somos artistas natos.

Sabemos dançar, cantar, representar. Só não tivemos escolas.

O xote é dança alemã, deixada por eles no Nordeste.

Preparei 18 jovens bailarinos para testes do Theatro

Municipal. Todos passaram.

O ser humano começa a Dançar antes de

nascer, chutando na barriga da mãe.

Vou dormir dançando e acordo dançando.

Um beijo para todos! Não deixem de dançar!

 

Sobre o Livro

Formato: 20 x 20 cm

Mancha: 14,5 x 15 cm

Tipologia: Incised901 Lt BT, Bitstream Vera Sans

Papel: Offset 90 g

no de páginas: 96

1ª edição: 2010

Equipe de Realização

Phorte Editora Ltda.

Edição de texto

Nathalia Ferrarezi (Assistente editorial)

Maria Aparecida F. M. Bussolotti (Preparação e copidesque)

Juliana Maria Mendes (Revisão)

Editoração eletrônica

David Menezes (Projeto gráfico, capa, diagramação e tratamento de imagens)

Ricardo Howards (Ilustração)

Impressão

Edelbra Gráfica