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Uma entrevista com
Brenda Buffalino
Ao falar sobre o preconceito racial, na
edição passada, Steven Harper, levantou mais que uma simples
constatação de fatos; ele nos remeteu a posicionamentos e
atitudes de artistas engajados e que têm algo a dizer sobre o tema.
Assim ilustramos a matéria com uma foto da ATDO, que tem em sua
diretora, Brenda Buffalino, um símbolo da oposição
a qualquer tipo de segregação racial. Em uma deliciosa entrevista
dada ao colunista em 16.05.99, Brenda fala sobre sua trajetória
artística, sobre preconceito e seu sofrimento com o atual contexto
de cisão da arte. Brindamos agora nossos leitores com trechos
desta conversa:
Dos anos 20 aos 40, não se concebia
um espetáculo sem sapateado nos Estados Unidos : estava por toda
parte, ritmando os espetáculos de vaudeville, os musicais da Broadway,
os filmes de Hollywood, as casas de shows, os clubes de jazz e as esquinas
da Nova Orleans ou do Harlem. As big bands, sensação do momento,
sempre apresentavam sapateadores. O sapateado foi a grande contribuição
dos Estados Unidos para a arte da dança.
Nas décadas de 50 e 60 o sapateado
sumiu do cenário cultural americano: ao mandar muitos do seus integrantes
para o combate, a segunda guerra mundial desmantelou as big bands, as grandes
casas de dança fecharam suas portas e o próprio desenvolvimento
da música jazz tomou outros rumos, privilegiando formações
pequenas. O estilo be-bop surgiu, tirando do jazz sua característica
de “música de baile”. Principalmente, o gosto do povo mudou, o Rock‘n
Roll fez sua estrondosa entrada na preferência dos jovens e o sapateado
ficou “fora de moda”.
Durante esses anos, os poucos que se preocupavam
com seu destino acreditavam que o sapateado ia simplesmente “morrer”, levado
para a tumba junto com os últimos componentes da “velha guarda”.
Felizmente, nos anos 70 houve um esforço para salvá-lo, redescobri-lo
e jogar uma nova luz nessa arte genial.
Na liderança desse movimento encontrava-se
Brenda Buffalino, que com sua incansável energia redefiniu os rumos
do sapateado e deu-lhe nova vida.
Brenda foi parceira do lendário Charle
“Honi” Coles. Em 1987 criou a American Tap Dance Orchestra, uma companhia
que procurava desenvolver o conceito do sapateado orquestral, onde sapateadores
criam camadas de ritmos, ponto e contrapontos, dialogando com os músicos
numa concepção moderna do tap dance. Em maio desse ano, ela
recebeu o prestigiado prêmio Flo-Bert Award para o conjunto da sua
obra.
Conversei com ela durante sua recente visita
ao Rio. Aqui vão alguns trechos do nosso papo. Conversamos sobre
o revival (revitalização) e sobre os rumos atuais do sapateado,
com a difícil questão racial.
Steven Harper: Para começar,
conte-nos um pouco de você, de sua juventude e como o sapateado entrou
na sua vida.
Brenda Buffalino: OK. Nasci em
Lynn, no Massachussets, perto de Boston. Na verdade cresci numa pequena
cidade chamada Swampscott. Comecei a estudar dança aos cinco anos.
Quando tinha seis ou sete freqüentei uma escola onde dançava
todo dia. Ás segundas feiras tinha aulas de interpretação,
ás terças de dança egípcia, ás quartas
de dança espanhola, ás quintas de acrobacia, ás sextas
de sapateado e aos sábados de ballet. Foi realmente uma educação
fabulosa. Minha mãe e minha tia eram artistas. Minha mãe
era soprano lírica e locutora e minha tia era soprano e pianista.
Tínhamos um show chamado “The Strickland Sisters”, que era o nome
de solteira da minha mãe.
SH: Quanto anos tinha então?
BB: Acho que tinha uns oito ou
nove anos.
SH: Era um show de vaudeville? (NA:
Um tipo de show que floresceu nos EUA nos anos 1910-1930. Era entretenimento
puro, shows sem temática, juntando numa mesma noite atrações
diversas como cantores, bailarinos, acrobatas, mágicos, etc.)
BB: Não, os tempos do vaudeville
tinham acabado há pouco, mas muitos vestígios ainda existiam.
A gente fazia shows em clubes onde éramos a única atração
da noite. Fizemos turnês na área do Massachussets. Era um
show muito bom, no qual fazia talvez quatro ou cinco números. Sapateava
mas também fazia outras coisas, como acrobacia. Era uma performer
nervosa. Não gostava de estar em cena – embora o fizesse muito bem.
Levei anos para aprender a gostar do palco. Adorava dançar, mas
não de estar no palco (risos).
SH: Então era como uma obrigação
de família?
BB: Bom, meio que simplesmente
aconteceu, sabe? Muitas vezes, de repente, eu começava a dançar
e cantar, na rua ou em qualquer lugar. Eram mais como transes. Entrava
num estado segundo, fazia coisa inacreditáveis, mas no palco era
difícil eu chegar lá. Levei muito tempo para aprender como
encontrar no palco a atmosfera que me permitia a liberdade espontânea
que conseguia no topo de uma colina ou debaixo de um poste de luz, onde
fazia de conta que estava em cena. Achava então que faria cinema
ou algo similar, onde não precisaria estar no palco.
SH: E quanto tempo durou o show, a
parceria “The Strickland Sisters”?
BB: Saí do show no inicio
da adolescência. Aí fui trabalhar como solista em touring
shows. Fiz turnês para o USO (NA: United Servide Organizations –
rede organizada para o entretenimento das tropas americanas)
SH: Tudo isso aconteceu então
durante os anos 40?
BB: Sim, e no inicio dos anos 50
dançava em clubes. Tinha 15 anos.
SH: Então quando é que
o sapateado entrou na sua vida artística?
BB: Na minha adolescência
o sapateado sempre foi bastante integrado com outras formas de dança.
Mas de repente não haviam mais trabalhos que envolvessem sapateado.
Nos anos 50 não conseguia emprego sapateando então virei
uma bailarina de danças afro-cubanas e fazia também danças
caribenhas. Tinha um número de Calypso com o qual fiz muitas turnês.
Com isso, fiquei conhecida na época, e continuei a estudar sapateado
com “Honi” Coles.
SH: Então você foi aluna
dele?
BB: Sim, estudei com ele quando
era adolescente. Comecei com Stanley Brown, em Boston, o mesmo com quem
Jimmy Slyde estudou. Depois, aos 17 anos, quando fui para Nova Iorque,
estudei com “Honi”. Ele tinha uma academia com Pete Nuggent. Tinha muito
pouca gente lá. Os dois costumavam ficar em pé atras da janela
esperando alguém entrar. Inevitavelmente, foram a falência.
Imagina, “Honi” Coles, que com “Cholly” Atkins, só alguns anos antes
fez um sucesso estrondoso na Broadway no show “Gentlemen Prefer Blondes”,
não conseguia mais trabalho dançando! Então aceitou
o cargo de diretor de palco do Teatro Apollo, no Harlem. Era muito triste.
O sapateado simplesmente morreu. Foi tão rápido. Talvez não
tenha sido tão rápido, mas me pareceu assim.
Então, éramos poucos no
estúdio “Dance Craft” e eu trabalhava com “Honi”. E essa moça,
Eve, trabalhava com Pete Nuggent, que era um dançarino fabuloso.
Tinha medo de Pete porque tinha uma boca muito grande, falava as coisas
sem embaraços (risos). “Honi” era tão doce…mas provavelmente
a verdade era o contrário (risos). Mas eram bons tempos porque os
sapateadores iam lá e improvisavam em longas jam sessions. Não
haviam alunos mas toda a velha guarda do sapateado ia lá. Eu era
parte daquilo tudo, improvisando e aprendendo com eles. Era muito bom.
SH: É aí que aprendeu
a improvisar?
BB: Não. Sempre soube
improvisar porque nunca conseguia me lembrar das coreografias (risos).
Tive que aprender a decorar, mas isso só veio mais tarde, quando
já era trintona. Sempre passei muito tempo nos clubes de jazz. Morava
na rua 52, então o “Birdland”, o “Basin Street West” e “The Palladium”
eram meus antros. Lá a arte do improviso reinava. Ficava lá
todas as noites, até as 4 ou 5 horas da manhã. De dia estudava
dança e à noite ia para os clubes de jazz.
SH: O Be-bop não era um estilo
de jazz previsto para ser dançado. Os músicos de be-bop queriam
justamente se afastar do rótulo de “música de baile” das
big bands. Como os músicos viam sua dança?
BB: Bom, eu improvisava com eles,
socializava. Era tudo informal. Não eram trabalhos verdadeiros pois
não havia trabalho para sapateadores. Então não fazia
shows com eles, mas sempre adorei dançar com o be-bop. Pouca gente
o fazia, mas já dançava-se com be-bop Tinha um swing diferente,
mais calmo, mais concentrado nos pés. Sempre segui os músicos
modernos. Era muito amiga do Richy Powell, o pianista do Max Roach Trio.
Naquela época eram a vanguarda. Mais tarde também segui o
movimento free-jazz.
Nos anos 60 casei-me e resolvi me aposentar.
Eu e meu marido compramos uma fazenda, tivemos dois filhos e comecei a
escrever. Queria ser escritora. Mas aí surgiu esse saxofonista,
Ed Summerlin, que usava meus textos e poesias nas suas performances. Juntamo-nos
e começamos a fazer performances multimídias para liturgias
de jazz. Eram tempos de muitas experimentações. Aí
então eu já estava de volta ao palco.
SH: Além de ser uma sapateadora
maravilhosa, sua grande contribuição foi também de
participar, ou mesmo de lidar com o movimento pelo renascimento do sapateado
nos anos 70. Como é que isso aconteceu?
BB: Foi meu destino tomar aquele
rumo e tomar as iniciativas que tomei. Isso definiu a direção
da minha vida para os próximos vinte anos. Nos início dos
anos 70 resolvi concentrar minhas atividades no sapateado. Ninguém
fazia isso na época, mas, para minha surpresa as pessoas gostavam
do que eu fazia. Então chamei o “Honi” de volta, ele era diretor
de palco no Teatro Apollo, e trouxe os Copasetics para minha fazenda em
New Paltz, no estado de Nova Iorque. (NA: The Copasetics era uma agremiação
de sapateadores que se encontravam regularmente com a finalidade de preservar
a arte do sapateado tradicional).
SH: Eles nunca pararam de se apresentar?
BB: The Copasetics era um Clube
e não uma companhia de sapateado. Todos eram membros do Clube, Charles
“Honi” Coles, Charles “Cookie” Cook, Hernest “Brownie” Brown, “Buster”
Brown, Bubba Gaines, etc. Cada um era solista ou membro de um grupo mas
em New Paltz eles começaram a trabalhar juntos. Foi aí que
começou o revival.
SH: E Marshall Stearns, qual foi seu
papel no renascimento ?
BB: Marshall já tinha morrido,
ele não chegou a ver o revival. Nem imaginava que o sapateado pudesse
voltar. No último capítulo do seu livro pode-se sentir que
ele trata o sapateado como uma arte incrível mas em via de extinção,
uma arte destinada a morrer com aqueles homens.
Acho que ao prestigiar o trabalho desses
sapateadores, ele proporcionou a eles com um senso de valor e de importância
para a sua forma de arte. Até então ninguém tinha
valorizado o sapateado como uma forma de arte. Simplesmente fazia parte
do show business, da indústria do entretenimento.
Também, o fato de serem convidados
a se apresentar no Festival de Jazz de Newport mexeu com eles como pessoas,
foi algo bem profundo. E se ele não tivesse escrito seu livro talvez
nem tivessem continuado. Mas nunca pararam. Mesmo sem trabalho eles guardaram
a chama acesa. E quando o revival aconteceu eles ainda estavam em forma.
“Honi” estava muito amargo naquela época.
Ele não somente assistiu a morte do sapateado mas também
do jazz, que foi substituído pelo Rock ‘n Roll no gosto do povo,
e para completar assistiu também a morte do próprio Teatro
Apollo, que não podia arcar com os cachês dos jovens grupos
de rock que conseguiam valores enormes em outros lugares. Então
tiveram que fechar.
Sabe, hoje as pessoas tratam aqueles vinte
anos com muita leveza, como se tivesse sido só um parêntese
na historia do sapateado, mas para eles era realmente um sentimento de
tragédia e desespero. Era muito grande, a obra das suas vidas. E
fora isso o “Honi” nunca foi realmente compreendido porque estava à
frente do seu tempo. Ele mesmo sabia o quanto era bom mas não conseguia
o devido reconhecimento. Ele tinha que aturar empresários dizendo:
“Yeah, você sapateia, mas volta quando tiver uma routine (coreografia).
Eles não conseguiam entender o que estava fazendo. Isso foi muito
difícil para ele.
Bom, de qualquer maneira, em 1978 ele
participou no meu show “Singin’, Swingin’ and Wingin’”. Depois disso montamos
um outro espetáculo juntos. Viajamos muito na América e na
Europa, durante vários anos. Aí ele saiu em turnê com
o musical “Bubbling Brown Sugar”.
SH: Você produziu e dirigiu um
documentário sobre os lendários hoofers, chamado Great Feats
of Feet. Conta um pouco desse episódio.
BB: Esse foi o tempo mais decisivo
da minha vida. Foi um divisor de águas. Consegui o primeiro patrocínio
dado para o sapateado pelo National Endowment for the Arts (NA: instituição
governamental americana que financia projetos nas mais variadas áreas
artísticas), o primeiro documentário filmado em vídeo,
tem duas horas de duração. Tivemos muitas conversas, muitas
entrevistas e muitas emoções fortes também. A comunidade
de New Paltz abraçou a todos, foi um momento incrível.
SH: Mais que um simples renascimento,
você gosta de falar em renovação do sapateado nos anos
70. Mas a finalidade dos Copasetics era de preservar a tradição
do sapateado. Não era então simplesmente o interesse de uma
nova geração para as mesmas pessoas, fazendo o que eles sempre
fizeram? Um novo foco de luz jogado no sapateado tradicional? O que mudou?
BB: Bom, o material era o mesmo,
o que mudou foi o formato. O sapateado virou uma forma de concerto, com
duas horas de duração, como as companhias de ballet ou de
dança moderna, isso era novidade. Antes disso o sapateado tinha
sempre no máximo 12 minutos num espetáculo que incluía
outras atracões, espetáculos de entretenimento. Com o formato
do concerto, de repente os sapateadores começaram a ser ver como
artistas. Também, começamos a fazer coreografias para grupo.
Isso tudo é diferente, sabe, agora o programa inteiro era nosso.
SH: Como que o “Honi” Coles reagiu
a essas mudanças?
BB: Em princípio ele achava
que não ia acontecer nunca. “O público vai sair no meio”,
dizia. Nem tinha pensado na possibilidade de fazer isso antes. Tivemos
brigas por causa disso. A gente tinha muitas brigas. Gerávamos tanta
energia juntos ! (risos)
Hoje tantos sapateadores são nossos
filhos! Veja, até então o sapateado não era nem ensinado.
As pessoas o pegavam de outras, imitando, e depois em cena mesmo, dançando
e ganhando experiência. “Honi” me mostrava um passo uma vez só
e eu tinha que pegar. Quando perguntavam onde aprendeu a sapatear, Ernest
Brown dizia: “baixou em mim”. As pessoas simplesmente o faziam. O desenvolvimento
de um solista, de um estilisto era uma coisa individual. Você desenvolvia
sozinho, procurando um estilo próprio, que lhe diferenciasse dos
outros.
Mas nós queríamos formar
uma nova geração de sapateadores, então tivemos que
desenvolver métodos de ensino para o sapateado. Hoje posso ensinar
em um ano o que me levou vinte para entender. As pessoas não dimensionam
isso quando se queixam que “a gente não tem um bom professor aqui”.
Nós não tivemos professores. A maior parte dos sapateadores
não queriam ensinar seu material de trabalho, seus passos eram próprios.
Eles mesmo os desenvolveram e não queriam ninguém imitando-os,
dançando seus passos. Só existiam alguns professores, como
Stanley Brown em Boston, ou Henry Le Tang em Nova Iorque. Esse sim é
uma pessoa que realmente ensinava. Fez muito pelo sapateado. Foi o professor
do Gregory e do Maurice Hines. Ele juntou o passado ao presente.
SH: O renascimento do sapateado foi
liderado por mulheres, principalmente mulheres brancas. Porque?
BB: É, realmente foi uma
salto de geração, de raça e de sexo. Acho que o que
aconteceu está ligado ao momento histórico. Eram anos de
grandes mudanças sociais, de reivindicações. As mulheres
começaram a ser politicamente ativas. Sabe, era o movimento de liberação
feminina e tudo mais. Tinha a Lynn Dally em Los Angeles, Jane Goldberg
e eu em Nova Iorque, e outra mulheres também, como Tina Pratt. Achamos
que estava simplesmente na hora. A gente batalhava muito, era militantismo
mesmo. Fizemos tudo isso pelo amor a forma de arte. Tinha que ser feito
por amor, pois não tinha dinheiro envolvido. Tudo tinha que ser
feito, não tinha nada, nem shows, nem cachês, nem sapateadores,
nem público. Somente muito amor e dedicação. Estávamos
envolvidas, era algo com enorme valor artístico.
Eu estava muito comprometida com o movimento
pelos direitos civis e também sempre me liguei com as danças
“negras”. Tudo isso se juntou. Estava determinada a trazer de volta esse
velhos sapateadores negros. Eles também não tinham nada a
perder. Quando “Honi” veio para o meu show, ganhava $150,00 por semana.
Ganhava pouco mas era suficiente.
Quando o dinheiro apareceu, a oferta de
trabalho começou a aparecer e o sapateado voltou a ser uma opção
profissional, os homens chegaram de novo. Acho que era tudo uma questão
econômica.
SH: Não podemos deixar de notar
que o sapateado ainda sofre de separação racial. A ATDO,
Manhattan Tap e outras companhias são, salve exceções,
integradas por brancos enquanto Savion somente emprega pretos. Porque isso?
Ainda tem, hoje, um sapateado “branco” e um sapateado “preto”, como nas
décadas de 30-40?
BB: Quando comecei a ensinar, não
tinham pretos fazendo aula. Sapatear era considerado UncleTom pela comunidade
afro-americana (termo negativo dado aos negros que “jogam com o sistema”,
aceitando reproduzir os estereótipos dos negros criados pela industria
do entretenimento branco). As famílias negras não queriam
que seus filhos estudassem sapateado. Estudavam dança moderna e
ballet com Katherine Dunham, Arthur Mitchell, etc. Por razões históricas,
o sapateado tinha uma forte conotação negativa. Só
depois de Gregory Hines, o show Black and Blue e Savion Glover que o sapateado
voltou a ser algo que jovens negros queriam fazer.
Também, voltou a ser uma
atividade economicamente viável. Com esses espetáculos, a
demanda por jovens sapateadores negros cresceu muito. Podiam começar
a trabalhar profissionalmente antes mesmo de ser realmente bons. Você
vê, de novo a questão é econômica.
No que diz respeito a ATDO, bem
que tentamos mas simplesmente não tínhamos alunos pretos.
Era até constrangedor para “Honi”, que estava no conselho de direção
da companhia. Hoje Savion é uma estrela. Ele pode pagar muito mais
aos seus bailarinos do que eu. Mas Lynn Dally, por exemplo treinou muitos
adolescentes negros que estão agora na Broadway.
De qualquer maneira, existe muita reinvenção
da história do sapateado rolando por aí hoje. Não
é tudo verdade, algumas pessoas simplesmente não sabem do
que estão falando. Não estavam lá pra ver. “Honi”
estaria subindo pelas paredes se ouvisse algumas das coisas sendo ditas
hoje.
Estamos vivendo dias difíceis
do ponto de vista racial. Ás vezes a divisão é feia.
Estamos tendo que trabalhar duro para manter a comunidade do sapateado
unida. Não era assim antes, nos anos 70-80. A pergunta era: “você
sabe sapatear?” Com o show do Savion (Bring in 'da Noise, Bring in 'da
Funk) o argumento principal passou a ser: “isso aqui é criação
dos pretos. É nosso. Vocês (brancos) não têm
lugar aqui”. O texto do show é amargo e divisor. Tudo em volta do
show, as críticas dos jornalistas, as entrevistas, são divisivas.
O mais engraçado é que nem acho que Savion pensa assim seriamente.
Ele cresceu com a gente e sabe que beneficiou-se das nossas idéias.
“Os grandes” lá fora sempre dividem, é o jeito deles de vender
sua mercadoria. Tem uma atmosfera negativa no ar. É terrível.
Enquanto a gente se ama e se respeita, é como se uma cunha está
sendo forçada entre nós. Temos que batalhar para não
deixar isso acontecer.
Quebra meu coração,
me deixa triste. O sapateado está de volta, vivendo seu auge de
novo, mas meu coração chora. É difícil sentir-se
assim.
Não vislumbro mais o futuro
do sapateado. O trabalho que fiz com a ATDO era para o futuro. Ninguém
fazia contraponto rítmico então. Agora parece obvio mas ainda
está para ser entendido plenamente. Acho que meu trabalho vai demorar
para ser inteiramente compreendido – em termos artísticos, não
políticos ou sociológicos. Acho que meu trabalho é
para o futuro, mas minha maneira de ver as coisas está no passado.
....
SH: Você viaja muito, ensinando
e dançando. Já encontrou bons sapateadores fora dos Estados
Unidos, na Alemanha, na Austrália, no Japão ou no Brasil?
BB: Já vi excelentes solistas
em shows pequenos. Encontra-se ótimos sapateadores no mundo inteiro.
Sapateadores não são tecnicamente melhores nos Estados Unidos,
virou realmente internacional. Mas acho que os americanos ainda entendem
melhor como dançar esse estilo, o rhythm tap. Ainda tem uma vantagem
artística. Não se trata dos passos mas de como você
os faz
“Riverdance”, “Tap Dogs”, “Bring in 'da
Noise, Bring in 'da Funk”, “Stomp”, tudo isso é muito interessante.
O mundo está sendo conectado pelo ritmo. Apesar que não é
uma época de sutilezas. Não é mais a sofisticação
do jazz que está fazendo sucesso. São grandes produções
ganhando milhões. O marketing é rei.
Savion (Glover) contagiou os jovens. Isso
é muito bom. É o lado positivo disso tudo. Ele reconectou
o sapateado com a música popular da hora.