TAPARAZZI


A (DES)HARMONIA RACIAL E O SAPATEADO

 
Seria maravilhoso poder dizer que o sapateado nasceu do encontro frutífero no solo americano de duas culturas com tradições folclóricas ricas, da fusão do europeu com o africano, resultado do “melting pot” (caldeirão racial) tantas vezes romantizado por escritores e historiadores. Infelizmente não é bem assim. Se, por um lado, a história do sapateado é marcada pela curiosidade entre heranças culturais ricas e diferentes, pela inspiração mútua, as vezes até pela admiração e a fascinação, por outro lado, espelhando a história social do país, predominou a desconfiança, a incompreensão, a rejeição, o confronto, o oportunismo e o poder de uns sobre os outros.
 O ato de dançar tinha objetivos e significação social radicalmente diferente para os europeus e os africanos. Na Europa, as danças sociais sempre foram ligadas a idéia de etiqueta social, onde a pose é fundamental e o relaxamento corporal mal visto. A preocupação principal é com o porte certo, o controle do movimento, a aparente leveza e a elegância do deslocamento no espaço. Diferentemente, nas danças africanas existe um forte conteúdo ritualístico. As danças tem um sentido humano e social fundamental, expressando e ilustrando todas as atividades do grupo e as emoções do indivíduo. Existe forte conexão com a terra, e corporalmente, um certo abandono com acentuados movimentos dos quadris e o torso relaxado.
De inicio, os brancos sentiram um misto de forte atração e repulsão por essas danças “selvagens”, soltas, e exóticas, em contraste com as suas, comportadas e rígidas. Alguns artistas passaram logo a imitá-las (em versões “light”, mais aceitáveis por seus pares), com grande sucesso popular. Mas a caracterização do negro era sempre estereotipada e grotesca e, por não entenderem suas raízes, desnaturavam as danças, retirando-lhe seu espírito original.
Da mesma forma, os negros, desde os tempos da escravidão, passaram a imitar e debochar das danças “brancas” mas acabaram integrando elementos delas na criação de uma nova linguagem corporal, própria do novo mundo. O tap dance nasceu dali, e não é exagerado dizer que os negros foram os “inventores” e o motor da evolução do sapateado americano, dando-lhe ao longo dos anos seus elaborados contornos rítmicos e técnicos.
Se aos negros compete o crédito da invenção e do desenvolvimento posterior do tap dance, a partir de 1920 os brancos contribuíram adicionando elementos de danças de salão, elaboradas coreografias, e uma sofisticada concepção cênica, gerando nova dimensão que, através dos musicais da Broadway e de Hollywood, alcançou a popularidade mundial.
 Os sapateadores negros, não encontrando o espaço devido no mercado profissional (controlado por brancos) sentiram-se roubados na sua arte. Quem fazia sucesso com o sapateado e quem ganhava dinheiro eram os brancos. Broadway e Hollywood eram sonhos inalcançáveis e, fora exceções os negros eram confinados aos esquemas do vaudeville, casas de espetáculos e teatros de segunda categoria. Sem tirar nada do talento de Astaire, Kelly e cia, é irônico notar que todas as estrelas da época de ouro do sapateado são brancas e que o mundo inteiro identifica a arte com artistas brancos.
É só a partir dos anos 70 que desenhou-se um movimento para valorizar o sapateado “de raiz”. A já então velha guarda, que carregava sua bandeira há tantos anos, finalmente conseguiu algum reconhecimento. Novos shows, filmes e musicais foram criados nos anos 80, oferecendo mais espaço aos negros  (“Black and Blue”, “Jelly’s Last Jam”, “Bring in the Noise, Bring in The Funk”…). Nasceram novas estrelas como Gregory Hines e Savion Glover, seguidos por uma enxurrada de jovens talentos. Mas assim mesmo hoje a separação racial, cultural e estilística permanece. É difícil encontrar uma companhia de sapateado racialmente integrada, mesmo nos shows da Broadway a segregação continua de fato e a discriminação racial continua viva e forte.
Steven Harper é
Professor e bailarino de sapateado
Página pessoal: http://stevenharper.stop.to/



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