O MUNDO DA DANÇA



A GUERRA NO GÊNESIS COREOGRÁFICO DE SASHA WALTZ

(Comentário comparativo de suas obras “Körper” e Zwieland)


A história começa com “A Mesa Verde” de Kurt Joos, ou seja começa com a guerra.

A Mesa Verde era (e de certa maneira é) um testemunho coreográfico sobre os impactos subjetivos da guerra, não obviando suas misérias mas hierarquizando sua humanidade, no sentido de que sempre florescem altos valores humanos como o amor, ainda que nas situações mais terminais, como no também humano invento da guerra. Paradoxos ao ar.

Quando Kurt Joos em 1932 usa a guerra, pela primeira vez na história da dança, para sustentar um relato coreográfico e uma dramaturgia explícita no âmbito corporal; assume um lugar claro ao praticar esta abordagem. Esse lugar, esse modo de olhar, se chama expressionismo, e tem um sobrenome: expressionismo alemão.

Conscientemente ou não, assumidamente o não, a dramaturgia física de Sasha Waltz tem esta genealogia. É neta estética de Joos, como é filha de Pina, mal que lhe pese.

Quando Sasha estréia “Körper” em 1999/2000 chega, depois de quase uma década de exercício da criação coreográfica, a um enunciado.

Körper é um corpus.

E este corpus, este corpo teórico, encerra significantes com certeza de origem. A dança de Sasha Waltz tem certidão de nascimento, o que nos tempos da cultura albina da aldeia global, é um estandarte eficiente.

Assim como Mary Wigman e Kurt Joos estão inseridos no discurso coreográfico de Pina Bausch, o próprio discurso de Pina está inserido no dizer coreográfico de Sasha, junto ao discurso de Susanne Linke e de Reinhild Hoffmann, sendo que talvez esta última seja a que mais influenciou as primeiras obras de Waltz.

Mas quando falamos de discurso inserido, não falamos de citação ou de influência direta; nos referimos a uma reelaboração de material previamente enunciado e oportunamente digerido.

É, recordando Schopenhauer, como a presença do vegetal (já digerido) na carne animal. Comendo a carne, comemos também o vegetal nela contido e previamente elaborado.

Körper não tem (nem deseja) a unidade monolítica da obra (à la Bausch) nem tampouco se assume suite de alma. As cenas se chamam umas às outras organicamente, sem a unidade flexível da corda mas também sem as fraturas previsíveis da corrente. Uma obra visivelmente editada produzindo uma dramaturgia eficiente e bastante pessoal.

E esta dramaturgia, que chamaremos de explícita, é elaborada com imenso cuidado. Cada passagem transparece horas de trabalho inteligente e sensível, e sobre tudo um direcionamento conceitual sólido. Cada palavra corporal ou verbal ocupa seu lugar natural no qual ela se acomoda o que se acomoda a ela. Um lugar orgânico e sempre conotativo. E são as palavras corporais ou verbais que, acomodadas em seu lugar cênico temporal oportuno, geram o grau de tensão dramática ideal otimizando o resultado de seu encontro com o espectador, significando.

Sasha Waltz é artífice de um universo dramático próprio, que modelado por Jochen Sandig, constitui um dos discursos mais substanciais da nova dança alemã, e isso não é pouco; e tampouco é tudo.

Mas também se trata de uma resultante evolutiva natural, um teatro de dança que não quebra as colunas que a sustém. Seu resultado final é previsível, esperado e até desejado pelos cultores do tanz-theatre. Se trata de um produto artístico que tinha seu público esperando antes mesmo de nascer.

Porque a dramaturgia explícita de Waltz é oportuna, responde a uma química pós-quimérica, e se bem ostenta autenticidade e seriedade extrema, é uma dramaturgia de mercado. O teatro de dança de Waltz não sedimenta nos tubos de ensaio, encontra sua fórmula final no trânsito ao espetáculo, esta é sua solução de transcurso.

Se bem Sasha Waltz foi beber nas fontes da nova dança holandesa e em outras grifes da contemporaneidade como David Zambrano e o grande improvisador americano-francês Mark Tompkins; sua dança é medularmente alemã, quase anacronicamente nacional.

O fato de que Körper tenha sua primeira inspiração no museu judaico de Berlim é importante mas não definitivo para a leitura da obra, como tampouco o é o fato “das alemanhas” para ler Zweiland.

Mas estes primeiros passos no processo estético definem direções, criam vetores, estendem uma rede que captura o próprio produto artístico da coreógrafa, e com o seu contexto, onde habita seu público. A ovação que Körper sem dúvida merece, está gerenciada.

Mas existe uma segunda dramaturgia em Waltz que reinventa outros rincões de suas histórias. A primeira dramaturgia, aquela que é criada, pensada e elaborada por Waltz e Sandig (cúmplices de criação já por uma década) é uma partitura inicial, documentada por seus próprios recursos, aparentemente inteira. Mas esta dramaturgia não funciona como tampão estético, bloqueando sua saída ao exterior e sim como grande eixo dominante de sua própria coerência, deixando em sua periferia pequenos núcleos onde podem germinar dramaturgias alternativas, e isto é talvez o fator mais augurioso das pautas dramáticas de Waltz e Sandig.

Em “Zwieland” a casinha que se arma e desarma itinerando pelo espaço cênico põe os bailarinos em uma situação de funcionamento que requer deles outras funcionalidades musculares e dinâmicas das que estão chamados a executar no total da peça. Não é isto uma dramaturgia autônoma, uma gíria no idioma proposto por Waltz?

Em Körper os intérpretes devem amontoar-se dentro de um container criando palancas, tensões e trações individuais e cambiantes para produzir o fenômeno coletivo. Não são estes ingredientes técnicos parte da mesma gíria?

Waltz não exagera na terminação de suas propostas visuais, uma vez obtido o lay-out e sua devida representação emocional, abandona o assunto para que viva por si mesma, sem excessos nos limados e burilados. Esta relativa impureza é que permite que brotem de suas estruturas elementos (talvez indesejados) de outros modos de dizer dramaticamente. Parasitas estéticos na busca de um lugar cênico. Bactérias que possivelmente possam imunizar sua dança das grandes enfermidades artísticas que produzem o fechamento estético e sua corte de maniqueismos.

É como que no final das contas se lhe nota o bairro. Muitos são os cuidados ativados para defender o glamour vanguardista das propostas formais de Waltz, mas apesar disso Sasha se veste para ficar em casa. Sua dança teatro anda em chinelos, a parte baixa posterior de sua camisa está enrugada e seu hálito está fora de controle.

Sasha pisa em terrenos inseguros e se lhe nota seu passado de zapping e instrução obtida sobre as misérias da guerra. Sasha Waltz é demasiado alemã para o mundo que lhe tocou viver, apesar do qual consegue criar.

E a história continua com a guerra, tanto Körper como Zwieland contém fortes referências conceituais ligadas à guerra e seus resíduos; e é a guerra como sinônimo de conflito que se revela semente de ambas dramaturgias de Waltz, a explícita e a espontânea.

O esquiador que desce pelo emblemático muro em Zwieland e a parede que cai a centímetros do caminhante em Körper, são dois anúncios mais da insegurança flutuante no espaço cênico.

Insegurança e guerra estão encarnadas na dramaturgia oficial de Waltz, que (como Joos) olha ao seu redor buscando respostas que talvez brotem de sua dramaturgia alternativa, da porta de serviço de sua morada estética.


Valerio Cesio

é crítico e coreógrafo



Obras de Sasha Waltz são analisadas por Valério Césio.

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