O MUNDO DA DANÇA


GERUSALEMME


As Termas de Caracala serviram em várias oportunidades para catapultar acontecimentos culturais ao macro-mercado, como foi amplamente demonstrado anos atrás pelos comercialíssimo "Três Tenores" (assim, com maiúsculas - eles merecem) que inundaram os canais de tv com o eco do seu sucesso.

No primeiro verão europeu do século, este glorificado espaço abrigou uma super-produção coreográfica digna de atenção: “Gerusalemme” da Ópera de Roma, agora sob a direção da superestrela do ballet Carla Fracci. A obra foi idealizada pelo marido da diretora da companhia, o profícuo Beppe Menegatti.

A idéia de Menegatti não poderia ter sido mais atual e atuante. Um “Romeu e Julieta” em Jerusalém, sendo Romeu muçulmano e Julieta hebréia. Uma idéia oportuna instrumentada de modo contemporâneo desde seu marco musical; uma coluna sonora operística apoiada em Verdi, com interferências de um percussionista ao vivo, o esplêndido Tulio De Piscopo e da cantora popular Loredana Berté que interpreta, também ao vivo, seu poderoso “Rap de fim de século” e quatro novas canções do célebre Mario Luzi, numa montagem sonora curada por Francesco Sodini.

A coreografia foi confiada ao belga Luc Bouy, que iniciou sua carreira no Scapino Ballet de Amsterdã para consagrá-la no Ballet do Século XX de Bruxelas e no Culberg Ballet de Estocolmo onde interpretou Albrecht da “Giselle” de Mats Ek que o colocou em evidência em todo o mundo. Foi ainda, durante anos, assistente de Mats Ek e dirigiu as companhias de Florença, Veneza, Verona e Roma. Muitas de suas coreografias foram moldadas sobre Carla Fracci, como a inesquecível “Filomena Marturano”, “Antonio e Cleopatra”, “Electra”, “Ida Rubinstein”, “La muda de Portici”, “Zelda” e “A Noite Transfigurada”.

“Gerusalemme” serviu para reafirmar a habilidade cênica de Luc Bouy, que estrutura-se coreograficamente com facilidade mas que, por vezes, não consegue encontrar muitas alternativas para as soluções de sua composição, que enfrenta a dificuldade natural de uma linha “argumental” claramente narrativa, com personagens e situações a serviço de um relato. Somado ao desafio da interação visual da cantora e o percussionista, produz, as vezes, um efeito demasiado estável, quase convencional.

Mas isto não desmerece em absoluto a qualidade de espetáculo coreográfico, que é colocada a prova durante os 90’ de duração (sem intervalo) com resultado positivo. “Gerusalemme” é um espetáculo de qualidade, que inclusive em seus momentos de excesso, ou de eventual ingenuidade, se mostra seguro.

O elenco do “Corpo di Ballo del Teatro dell’Opera di Roma” foi vibrante, e mesmo nos ocasionais desajustes, com brio.

Uma boa parte da companhia se vê tecnicamente solvente e cenicamente segura, passando uma agradável sensação de alegria de dançar, o que em ambientes abertos de platéia heterogênea como este, se torna muito eficiente.

E falar do elenco de “Gerusalemme” é falar de Carla Fracci, que interpretou o papel da mãe com singular entrega dramática. Carla Fracci é uma grande artista (isso todo o mundo sabe), mas é também, (e isso nem todo o mundo sabe) uma grande artista com grande facilidade de produzir estranhas gamas intermediárias no percurso dramático. Ela cria cores dramáticas novas, ligeiramente diferenciadas do esperado, o que faz do seu discurso cênico um testemunho da alta linhagem artística.

A personagem da mãe parece esculpida de forma muito particular, não é em vão que Bouy vem trabalhando faz tempo com Fracci. Existe entre coreógrafo e bailarina uma afinação muito especial, uma cumplicidade artística determinada que gera a agradável sensação da personagem feita a medida, onde a intérprete transita com facilidade. Se este encanto se quebra em algumas cenas de conjunto, se faz intenso em momentos como no trio, no solo final e muito particularmente no duo, onde Fracci raia a máxima altura. Coisa de estrelas.

Alessandro Molin também teve momentos de brilho, assim como outros solistas; mas o que fica gravado na memória é a sensação geral do desempenho artístico, um espetáculo bem dançado em cujo interior palpita a luz de uma estrela.


Valerio Cesio
é crítico e coreógrafo