O MUNDO DA DANÇA


"May B" vinte anos  depois
  A coreógrafa hispano-francesa Maguy (Margarita de origem) Marin escolheu para a turnê sul-americana-2000 de sua companhia a peça mais emblemática de seu repertório. "May B" é sem nenhuma dúvida uma das obras coreográficas de maior êxito dos anos 80 e na ocasião de sua estréia na França (1981) cumpriu a função de divisora de águas num âmbito estilístico profuso e prolífico: a curva ascendente da "nouvelle dance".
  "May B" tem como fonte de inspiração o universo estético de Samuel Becket. Mas não só o Becket de "Esperando  Godot" e sim também o Becket de "Ato sem Palavras", de "Molloy", de "Malone Morre". Uma paisagem humana desolada, monocromática, terminal e irremediável. A certeza do fim desde o fim mesmo.
  Dez criaturas condenadas a proximidade desenham suas vidas paralelas e limitadas durante a primeira metade da obra e se transladam no micro-circuito de sua própria concepção deteriorando o coletivo, na segunda.
  Parece simples... e é. Não a visão sócio-filosófica da coreografia de Maguy Marin, profunda e austeramente complexa; e sim o desenho coreográfico e a linguagem  escolhida.
Maguy Marin sabe nos dizer com emotiva inteligência que "menos" é "mais"; e articula seu discurso coreográfico desde a postura de um eremita. Sem nenhuma concessão; sem o menor artificio; apenas o necessário para sobreviver...
Não há truques em "May B ", há verdade narrada numa linguagem de verdade. A coerência brota da entrega, e sem entrega é impossível interpretar "May B". Não há espaço para distrações ou divagações, sua pontuação dramática funciona como uma engrenagem; precisa e predestinada. Por isso merecem ser mencionados os integrantes da atual formação da Companhia Maguy Marin: Ulisses Alvarez, Laura Frigato, Preciosa Gil, Sylvie Pabiot, Thierry Partaud, Jasmina Prolic, Ennio Bammarco, Marcelo Sepulveda, Dominique Uber e Adolfo Vargas.
Se no inicio dos 80 "May B" surpreendeu a todos, hoje em dia surpreende mais ainda... porque não precisa mais   surpreender.
A obra se mantém inteira, íntegra, sem fissuras internas; o que poucas obras de duas décadas atrás podem ainda ostentar aos olhos da pós-modernidade de segunda geração. Aos olhos de um "hoje" muito mais acelerado, mais informado, mais disperso...
"May B" é para os anos 80 o mesmo que "Cafe Müller" de Bausch para os '70; um indicador surpreendente e expressivo na evolução de uma linguagem. Já nos anos 90 é impossível falar de "um" indicador neste sentido; esse lugar está ocupado por um mosaico de obras; o imaginário coletivo de fim de século está condenado a pulverização, a fragmentação.
 Não é em vão que esta foi a obra-chave dos pesados portões do Palais Garnier, aonde Maguy Marin chegou poucos anos depois para montar "Oficio de Trevas", num gesto importante da direção artística da casa que recuperou para o Ballet da Ópera de Paris (depois de alguns anos de tendências mais burocráticas) sua já tradicional ousadia na diversidade estilística de seu repertório. Um gol e o início de um processo que inclui (já nos 90) outra jóia coreográfica: "Le Parc" do franco-albanês Angelin Preljocaj.
A vigência, aquele valor estético que parecia agonizar com a modernidade, volta à luz para ser repensada. É um luxo histórico poder ir ao teatro assistir um mito da pós-modernidade. Talvez seja um ato de sincretismo, um presságio.
Por isso são afortunados os jovens bailarinos sul-americanos que no final deste emblemático 2000 aproveitaram a oportunidade de assistir "May B" em seu país, vinte anos depois... e sem nenhuma ruga. Terminar este século com uma obra deste calibre nos olhos e na memória seguramente foi esteticamente mais nutritivo que o tradicional "Quebra-Nozes" no Natal.
      Valerio Cesio
é crítico e coreógrafo



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