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MOSAICO


REQUEBROS E SALAMALEQUES NA VIRADA DO SÉCULO

Em alguns textos teatrais brasileiros ¾ escritos em meados dos oitocentos, como os dramas A Expiação de José de Alencar, e Luxo e Vaidade de Joaquim Manuel de Macedo, a comédia ligeira Judas em Sábado de Aleluia de Martins Pena, e mais tarde, já na virada do século, algumas revistas e burletas de Arthur Azevedo (O Mandarim, Cocota, O Carioca, O Tribofe e A Capital Federal); a burleta Forrobodó de Luiz Peixoto e Carlos Bettencourt e uma peça musical de Paulo Barreto (o João do Rio), Um chá das cinco ¾ verifica-se que os autores utilizaram várias danças da moda e elementos coreográficos diversos na construção dramatúrgica e cênica, criando e introduzindo, no corpo do texto teatral, momentos de dança, como por exemplo: os movimentos de galopes e cancã para as mutações de cenário; os quadros-vivos, semelhantes a instantâneos fotográficos, que retratam a sociedade carioca por meio de gestos e posturas em suspensão, utilizados em muitos finais de cenas; a sucessão vertiginosa de quadros, como representação da aceleração do ritmo do cotidiano provocado pelo avanço tecnológico e pelas mudanças na geografia urbana. Nessa época, o palco funcionava como um grande difusor e mídia das novas tendências musicais e das danças que tornaram-se moda, como o maxixe que tornou-se uma "verdadeira febre", inclusive, internacional.

O percurso da crescente corporificação da dança vai, de alguma forma, se salientar ao longo do tempo na medida em que se percebe, nos textos, uma trajetória de fisicalização da etérea musa da dança por meio da aproximação física entre os pares dançantes e o tratamento que era dado à dança nos palcos, que estando a serviço do teatro musicado funcionava não só como entretenimento e diversão, mas como instrumento de distração da platéia durante as mudanças de cenário, adquirindo, assim, uma função objetiva e utilitária. A dança no teatro também apresentava personagens e servia, de algum modo, para desviar e aliviar possíveis tensões dramáticas do enredo, ou, simplesmente, para lançar modas, ilustrando, por exemplo, as músicas de carnaval.

De tal modo que percebe-se nos textos a interseção e o entrelaçamento de linguagens presentes tanto no corpo de narrativas, quanto no corpo de personagens. Entrelaçamento que ocorre pela incorporação do ritmo coreográfico e do desenho geométrico de determinadas danças ao ritmo da narrativa, e na utilização dos códigos de danças para a descrição de situações e comportamentos dos personagens.

Podemos, então, relacionar dança, teatro e literatura, por meio do olhar que aproxima em close-up a maneira e a mania de dançar do carioca da virada do século passado, profundamente marcado pela utopia cosmopolita, isto é, pelo desejo de fazer parte da construção de uma metrópole em todos os seus aspectos de modernidade e avanços tecnológicos. O que se dançava nos espetáculos musicais como a opereta, o vaudeville, a revista e a burleta, não só reproduzia os ritmos da moda européia, mas também refletia os salões, as senzalas, as ruas e, mais tarde, os clubes recreativos do Rio de Janeiro. Eram danças sem nenhum cunho acadêmico, no que diz respeito às técnicas do ballet. O enfoque era dirigido, principalmente, para o divertimento, para a função de entreato e para as questões relacionadas ao comportamento, à moda e à etiqueta. Uma proposta de reflexão sobre a maneira como foi criada a imagem da moderna musa da dança carioca, sempre em transformação, dançando no salão privado, no espaço público e no palco.

Na verdade, pegando uma carona na exposição "Paris 1900", do Centro Cultural Banco do Brasil, podemos conferir uma evidente mudança de ritmo na vida do carioca, uma vez que a febre de modernização se espalhou como uma epidemia. Assim, a população urbana passou a andar mais depressa em automóveis e bondes e a simular compromissos importantes olhando repetidamente para os relógios de pulso. Os escritores produziam mais rápido com as máquinas de escrever e por todos os cantos os fonógrafos soavam animadamente, enquanto os cinematógrafos, dentre outras inovações, exibiam imagens em movimento. Foi nessa época que as atenções se voltaram para o corpo tanto no que diz respeito a sua higiene quanto a sua liberdade de movimento, daí a proliferação de atividades esportivas. De fato, a belle époque carioca foi um período de efervescência, de liberação dos costumes, de entusiasmo e de frisson.

Em verdade, falar com os olhos e pensar com os pés remete diretamente à dança e caracteriza, de certo modo, o gosto da sociedade brasileira pelo baile preocupada em fazer "borbulhar o prazer", o brilho e o bom gosto, em suas casas. Com efeito, a discussão gira em torno das danças em voga nos salões e nos palcos da época ¾ o tango, o maxixe, o one-step ¾ assim como são mencionados os esportes da moda ¾ o foot-ball, o tennis, a malha, o remo e a natação.

Segundo Nicolau Sevcenko, no ensaio A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio, "se algo ocorreu com os homens, foi que além de adquirir asas (numa referência a Santos Dumont), descobriram que tinham músculos e passaram a explorar as vantagens destes sobre os velhos e surrados miolos". Isto significa que a expressão "o Rio civiliza-se" trouxe a reboque uma curiosa mutação cultural, desencadeando uma espécie de febre esportiva, que assolou o século XX após a Primeira Guerra.

A expressão "civilização esportiva" não deve ser entendida como se referindo exclusivamente à prática generalizada de diferentes modalidades de esporte, mas à generalização de uma ética do ativismo, a idéia de que é na ação e portanto no engajamento corporal que se concentra a mais plena realização do destino humano. As filosofias da ação, os homens de ação, as doutrinas militantes, os atos de arrebatamento e bravura se tornam índices nos quais as pessoas passam a se inspirar e pelos quais passam a se guiar. Era da eletricidade passando para os corpos, imprimindo-lhes a compulsão do movimento, da ação, fosse espontânea, fosse mecânica, fosse em coordenação de massas.

O autor explica que "o desenvolvimento dos esportes na passagem do século se destinava justamente a adaptar os corpos e as mentes à demanda acelerada das novas tecnologias". Uma vez que a metrópole era o palco por excelência para o desempenho dos novos potenciais técnicos, era lógico incluir, no projeto de reforma urbana, uma reforma dos corpos e das mentes, alterando o quadro de valores sociais com a idéia de saúde, cuja condição básica é a higiene. Essa idéia justifica a "política sanitária" de Pereira Passos, que evacuou a população pobre da cidade, empurrando-a para os morros e os subúrbios, "varrendo das ruas" aquilo que ele denominava "o rebotalho ou as fezes sociais".

O que João do Rio coloca em cena, por exemplo, é justamente o reflexo da "trepidação cinematográfica da sociedade", referindo-se "as primeiras obras do cinema, cuja técnica de filmagem causava o curioso efeito de acelerar comicamente o movimento dos corpos, acrescentando-lhes ademais uma espécie de tremor febril", metáfora aliás muito adequada para o "pandemônio da modernidade que se abateu sobre o mundo". A sociedade chic e snob, do Rio de Janeiro, além de importar a tecnologia estrangeira e tudo o que derivava dela, vivia, também, nas bases do American way of life. Por isso não faltam, no texto de João do Rio, os tais estrangeirismos.

A nova sociedade cosmopolita, centrada no culto da ação e do esporte, deflagrou um surto de dança.Uma nova dança, por assim dizer, não mais no seu sentido tradicional de entretenimento social cortês, movendo-se em coordenadas e gestos convencionais delicados, "a dança que surge para empolgar o panorama cultural do século XX é baseada no ritmo pulsante, sincopado, frenético, de base negra, cigana ou latina e o que é buscado nela é um estado de completo abandono, excitação e euforia extática", ultrapassando as fronteiras de uma cultura calcada na palavra por uma outra baseada nos valores do corpo, da ação e dos movimentos coletivos.

Marina Martins
é dançarina, coreógrafa, diretora, professora e pesquisadora.


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