MOSAICO



SAGRAÇÃO, RITMOS E TRANSE


Em meio às cinzas da quarta-feira renasceu a idéia do sagrado e com ela a tentativa de esclarecer o texto do número anterior. Para isso, tomo o carnaval, a mais recente manifestação pública, como um evento capaz de servir de exemplo à citação: "o estado de transe veicula uma vibração em que corpo e tempo se transformam numa eternidade de instantes miraculosos".

De fato, durante o carnaval pensamos com os pés e falamos com os olhos. O carnaval, ao mesmo tempo em que se organiza como espetáculo, não deixa de ser uma celebração na qual as pessoas dançam e cantam em conjunto. Por este aspecto participativo podemos propor uma reflexão sobre o estado de simultaneidade e evasão do individual, experimentado tanto nos desfiles das escolas de samba, como nos blocos e cordões de rua.

O que é o carnaval senão uma experiência sublime, no sentido do curto-circuito entre a sensibilidade e a razão? O que vemos e o que sentimos não têm uma força rítmica, pulsante, que reúne o antigo (tradição, rito, festa) e o novo? Percebemos que a tradição não está presente só nos giros das baianas e nas evoluções dos casais de mestre-sala e porta-bandeira, baluartes de uma agremiação, mas, principalmente, no âmago da bateria ¾ coração da escola que embala as alas de passistas, harmoniza e mantém coesa a estrutura do desfile, por exemplo. É, pois, de dentro desta estrutura rítmica tradicional que vislumbramos, na superfície (ou na cara) do desfile, os elementos novos incorporados, logo de início, pelas composições coreográficas das comissões de frente. Além disso, o samba, pela atualidade de alguns enredos e pela própria atualidade do desfile, vem vestido e ornamentado por efeitos especiais de alta tecnologia, da iluminação, da cor, da textura, dos materiais aplicados nas alegorias e nas fantasias, entre outras novidades. Assim, a partir do espetáculo-desfile das escolas de samba, na Sapucaí, a visão da simultaneidade entre o velho e o novo torna-se mais clara.

No entanto o que vale mesmo no carnaval carioca é o samba no pé, é o ritmo, é o deixar-se levar pelos pés embalados pelo balanço dos quadris, num movimento de avanço sincopado, que procura preencher aquele espaço vazio provocado pela alteração rítmica, típica do batuque. Esta suspensão consiste no prolongamento do som de um tempo fraco num tempo forte, chamado síncopa ¾ nesse sentido vale checar a explicação de Muniz Sodré sobre a sícopa rítmico-melódica brasileira, no seu livro Samba o dono do corpo.

De qualquer modo, e mesmo sem o conhecimento histórico da origem do samba, podemos perceber, enquanto participamos do carnaval, que é a entrada corporal no espaço rítmico aberto pelo batuque que provoca a configuração, na superfície física do corpo, daquelas tais potências abissais que chamei de pulsões e desejos. Tais potências não se limitam ao corpo, mas se configuram pela comunhão dos movimentos e da pulsação. Os integrantes desse conjunto deixam suas individualidades misturarem-se a outras, formando uma massa dançante que se desloca, fluentemente, como um rio que passa. Enquanto brincamos, sambamos ou assistimos ao samba, podemos sentir que o nosso corpo é levado a preencher a brecha rítmica, que se repete como um mantra, embriagando-nos, certamente, de algum misticismo. Assim, experimentamos o transe e manifestamos a pulsação intuitiva do sagrado e, sem percebermos, avançamos para muito além de nós mesmos, para dentro de uma espécie de abstração coletiva.

Na técnica dessa forma musical, o ritmo ganha primeiro plano (daí a importância dos instrumentos de percussão), tanto por motivos religiosos quanto possivelmente por atestar uma espécie de posse do homem sobre o tempo: o tempo capturado é duração, meio de afirmação da vida e de elaboração simbólica da morte, que não se define apenas a partir da passagem irrecorrível do tempo. Cantar/dançar, entrar no ritmo, é como ouvir os batimentos do próprio coração ¾ é sentir vida sem deixar de nela reinscrever simbolicamente a morte.1


Aproveito o momento para esclarecer sobre o que vem a ser um bom exemplo da presença do sagrado na dança coletiva, através da recente experiência do carnaval, uma vez que, dentro da festa, vivemos simultaneamente a experiência da não identidade e a do conjunto, enquanto cantamos a modinha: "... quero me perder de mão em mão/quero ser ninguém na multidão...". Além disso, convido o leitor a pensar a dança como uma poética da linguagem não verbal, olhar, um pouco mais detidamente para os efeitos da dança, no salão, no palco ou em alguma festa particular. A dança, quando se manifesta, traz sempre alguma coisa que nos leva a segui-la, seja no carnaval, no baile ou quando assistimos um espetáculo. Enquanto espectadores e dançarinos, por algum motivo, somos induzidos a ela. Vale a pena, portanto, aproveitá-la e usufruir desses estados rítmicos/sagrados, como rito, como festa ou como estética.

Este convite inclui uma possível correspondência publicável entre os leitores interessados em trocar idéias. Enviar mensagens para meu e-mail: mmartins9@uol.com.br com cópia para daa@dancecom.com.br

Marina Martins é

dançarina, coreógrafa,

diretora, professora e

pesquisadora


1 SODRË, Muniz. Samba o dono do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 1998, p.23