MOSAICO


DANÇA SÍMBOLO E SUPERFÍCIE


Do cânone acadêmico e narrativo à desordem dos corpos contemporâneos, a linguagem da dança sempre foi uma poética do corpo e do espaço, uma arte calcada tanto na expressão individual, quanto na lógica de composições coreográficas (definidas como seqüências ritmadas e harmoniosas de gestos e passos) desenvolvidas no espaço cênico.

A dança, como poesia do movimento, acontece impulsionada por uma força que reúne o antigo e o novo, gerando um "estado" chamado, por alguns, de sagrado. Aqui, a palavra sagrado está enraizada na certeza da vida e veicula uma vibração em que corpo e tempo se "transformam numa eternidade de instantes miraculosos" 1 Nesse sentido, a dança não estaria diretamente vinculada a esta definição de sagrado: a simultaneidade entre o tempo e a ausência, a serenidade e a perda de si, a experiência da ligação impossível, porém visível, entre a vida e o sentido? Não seria o dançarino um poeta que, por meio do domínio de seu corpo (veículo da linguagem), deixa-se levar, como num transe, abrindo brechas no espaço (entre a terra e o céu) e ligando o humano ao divino?

Para além das clivagens entre Bem e Mal, puro e impuro, permitido e interdito, intelectual e sensível, o sagrado é "sublime" no sentido em que há um curto-circuito entre a sensibilidade e a razão, em detrimento do entendimento e do conhecimento. Um golpe desferido pela sensibilidade na inteligência. É a envolvente sensação de absoluto diante de uma paisagem de montanha, mar, um pôr-de-sol, uma tempestade noturna na África... Então, sim, o sagrado autoriza o desfalecimento, o desmaio do Sujeito, a síncope, a vertigem, o transe, o êxtase, o muito azul... O sagrado eclipsa o tempo e o espaço. Passa para um ilimitado sem regras nem reservas que é próprio do divino. Em suma, o sagrado é um acesso imediato ao divino 2

Com efeito, a dança se antecipa à história e o dançarino, com sua presença, cria uma nova ordem. A dança, em concordância com o projeto simbolista, é uma arte capaz de dar conta dessa pesquisa em torno da presença física do espiritual porque supera a distância entre sujeito e objeto. Mauclair disse certa vez que "a dança é o caminho mais curto entre o visível e o invisível". Depois de uma fase cuja eloqüência dramática se diversificou pouco a pouco a dança enriqueceu-se de fórmulas e de construções que se tornaram passos, tão numerosos quanto as palavras, que encadeados traduzem situações, estados de alma, imagens...

A Dança Moderna, do início do século XX, recebeu como herança do Romantismo os chamados "ballets brancos", baseados em argumentos ingênuos e sonhadores, produzindo, de certo modo, derivações como as danças individuais de Loie Füller e Isadora Duncan, por exemplo, e os ballets abstratos de Balanchine, construídos sobre uma partitura rítmica de corpos e de linhas harmonicamente arquitetadas. Se, por um lado a dança como espetáculo ganhou autonomia por meio dos Ballets Russes, que seduziram o olhar e o espírito do espectador, por outro, ganhou força e expressividade a partir das pesquisas de Laban e dos expressionistas, passando a figurar como uma arte provocativa e denunciadora.

Primeiro utilizando as batidas de mãos, de pés e instrumentos de percussão como acompanhamento e, depois, as palavras, a dança apoderou-se, em seguida, da música sinfônica, para, mais tarde, abandoná-la numa tentativa de voltar ao seu estado primitivo. Atualmente, ainda pesquisa-se o desmoronamento da estrutura física como suporte do corpo e do sujeito, assim como o conceito de contemporaneidade nas questões da Body Art e da Performance, surgidas nos anos 60. Desde então, a dança passou a ser vista como uma tradução privilegiada de um momento efêmero que tende ao despojamento total, cujo tratamento enfatiza o corpo como resíduo da existência. Um exemplo disso é a mecanização e a repetição do movimento usado como recurso que gera o desmantelamento corporal.

No entanto, dança é poesia, mas em meio a atual desordem mundial como abrir espaços para que seja absorvida como sagração?

Segundo a Teoria da Recepção, a obra de arte, para fazer sentido, conta com a participação criativa do espectador que completa, a seu modo, as brechas dispostas provocativamente. Nessa perspectiva, o espectador torna-se um intérprete, uma vez que preenche com sua própria imaginação os espaços de ausência contidos em uma obra artística.

Por seu turno, o espectador de dança pode preencher, com seu próprio corpo e sensação, os espaços abertos nas danças que vê, experimentando reações emocionais e cinéticas, enquanto que, para isso, o dançarino trabalha simultaneamente entre a superfície e o símbolo das formas que apresenta. A dança, então, vira poesia quando sintetiza no gesto do dançarino a superfície das formas (palavra/imagem no espaço) e suas potências abissais, como as pulsões, os desejos e a pulsação intuitiva do sagrado, que emergem pelas brechas dos movimentos. Assim, o espectador ao olhar um dançarino, além de ver a carnalidade, a forma e a superfície do corpo que dança, penetra no sentido dos símbolos que emanam da poesia da transição dos movimentos, participando, dessa maneira, do transe e da manifestação do sagrado estimulado pela dança.

KRISTEVA, Julia. In O feminino e o sagrado.

2 CLÉMENT, Catherine. In O feminino e o sagrado


Sinceramente, espero que 2002 seja um ano de conquistas tanto no campo de estudo e desenvolvimento da linguagem da dança, quanto no da sua criação, assim como desejo que o sagrado esteja presente na possibilidade de mudanças para uma nova ordem humana, da qual todos possam participar. Vamos dançar e celebrar a esperança!

Marina Martins é

dançarina, coreógrafa,

diretora, professora e

pesquisadora


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