MOSAICO


É do romancista André Gide a primeira nota sobre os Ballets Russes, publicada na Nouvelle Revue Française, em julho de 1909, com certeza um dos mais expressivos registros de nascimento de uma nova reflexão sobre a arte da dança. O primeiro número da NRF saiu exatamente no mesmo ano da estréia dos  Ballets Russes, no Teatro Chatelet, em Paris, com Anna Pavlova no papel principal de Les Sylphides..  Entretanto, Gide foi bastante reticente em sua nota só deixando-se conquistar a partir da segunda temporada, quando Diaghilev apresentou o Schéhérazade, estrelado por Nijinski e Ida Rubinstein e coreografia de Fokine.
A NRF partiu de uma herança simbolista,  mas direcionou seu interesse para um novo rumo artístico e objetivo, segundo Auguste Anglès, num combate paralelo ao dos Ballets Russes, "que forçaram as portas da NRF, acabando por invadi-la e empurrá-la para uma determinada evolução estética". Além de Gide a crítica de dança se expandiu por meio de Pierre Louys, Camille Mauclair, Paul Valéry, Henri Ghéon, Jacques Rivière, André Saurés e outros.
Nesse período, o interesse dos intelectuais e do círculo artístico parisiense girava em torno do triunfo das óperas de Richard Wagner, que eram as mais cantadas em Paris.
Wagner, desenvolvendo o conceito da obra de arte total, criou um problema para o bailado francês, que não se encaixava mais na narrativa operística, excluindo-o de vez de suas partituras. Enquanto o bailado tradicional estava ligado a noção de um discurso traduzido em movimento e chamava para si o canto e a declamação de modo a tornar a história, que a dança devia ilustrar, mais explícita, a Ópera tinha tendência a repudiar uma arte estranha (como as entrées) que quebrava a lógica da ação dramática e do discurso musical.
O bailado tradicional tornava-se, então,  irrecuperável no concerto do teatro total, como queria o compositor alemão, e definir uma nova forma coreográfica conveniente ao espetáculo era tarefa indicada para especialistas, mas Wagner não tinha meios de a empreender ? "se era músico e poeta, se podia fazer vingar as suas idéias sobre a encenação, faltava-lhe a possibilidade de se tornar coreógrafo". A partir daí, José Sasportes   informa que foi após Wagner e Mallarmé que a dança tornou-se uma preocupação estética para poetas, pintores e músicos.
O final do século XIX viu proliferar uma abundante literatura sobre aquela dança, pois se tratava de dar um sentido à arte que estava nascendo. Os intelectuais franceses que comungavam na "religião" wagneriana, atribuíram-se a si próprios a missão de lutarem por uma dança diversa, por uma dança do futuro, que imaginavam poder ser uma espécie de dança-arquétipo.
Stéphane Mallarmé, por seu turno, fez um elogio à criação estética, por meio de imagens de verticalização associadas a uma ideologia de elevação espiritual, características do pensamento simbolista, e à dança como forma de arte passível de levar a esta espiritualização. O poeta se definiu como crítico de dança publicando suas primeiras críticas em 1883 ? "um crítico que era um poeta e que quis acreditar que a dança podia ser uma arte superior".
O modo "singular de pintar e anotar impressões muito fugidias" se assemelha às composições coreográficas dos ballets românticos, cujas personagens femininas aparecem sempre fugidias como fantasmas ou seres encantados, em enredos que, geralmente, se baseiam em contos de fadas e encantamentos. Para esse gênero de dança, as bailarinas deviam se mostrar tão leves como se pairassem no ar, como figuras suspensas sobre os pés em ponta ou sobre o chão, elevadas pelos braços fortes dos bailarinos que lhes serviam de suporte. Suas formas físicas exibiam uma condição de beleza quase mórbida, cujas características (a pureza, a virgindade e a leveza do espírito) consolidavam um estado d'alma nos limites de um corpo trabalhado pela severa técnica do ballet, mas que transcendia a materialidade física pelo virtuosismo que alcançava.
Nesse contexto pós-simbolista, os Ballets Russes apareceram, afirmando com Cleópatra e Danças do Príncipe Igor, tanto o modismo oriental, com suas cores e sensualidade, quanto a criação de um novo formato de espetáculo, que tornava a dança uma arte autônoma. Na opinião do pintor Alexandre Benois, a montagem coreográfica de Schéhérazade, de Fokine, as cores dos figurinos e o cenário "prodigioso" de Léon Bakst, assim como as interpretações sensualíssimas de Nijinski, como o Escravo Predileto, e Ida Rubinstein no papel de Zobeida, criaram  "uma forma de espetáculo teatral em que os diversos elementos se fundem num todo para constituírem o que Wagner  denominou  de teatro total". Conseqüentemente, surgiram possibilidades de se pensar uma nova substância estética para a dança, isto é, abandonando o compromisso com a narrativa, seja da ópera, seja dos próprios ballets românticos, a dança poderia seguir uma estética abstracionista, da pura imagem.
Ao longo do século XX assistiu-se ao afastamento de Wagner como modelo cultural e à sua substituição pelos Ballets Russes, que inverteram a escala de valores, impuseram novos critérios e quebraram barreiras de sensibilidade. Entre os Ballets Russes e as elites modernistas, verificou-se uma influência recíproca, quase instantânea. A dança passou a existir, sob o testemunho dos colaboradores da NRF, como uma arte viva, cuja linguagem veio sendo concebida a partir da freqüência assídua dos espectadores e sua recepção, inscrita entre a síntese das artes e a dança absoluta.
Assim, depois de um século de prática moderna, a dança, totalmente emancipada e autônoma, apresenta-se fragmentada e híbrida, ao mesmo tempo que sua linguagem é universal  trata de problemas do indivíduo contemporâneo e cosmopolita em busca de uma identidade cultural.
Mesmo assim não se pode deixar de lembrar a visão de Mallarmé da dança como sinal, como possibilidade de escritura abstrata: "Na dança, o corpo é espírito. A consciência deixa de intervir para nosso tormento e nossa tristeza: deixa de ser órgão da diferença, para ser o espelho do prazer. Diante dos nossos olhos, o corpo é o número absoluto do espírito, o signo perfeito que exprime os nossos desejos, as nossas imaginações e as nossas esperanças mais reais. Nada que seja pensamento é estranho à forma. A beleza da forma faz apreender qualquer idéia viva pela imagem que dela dá: imagem inebriante para uma cabeça bem recheada, capaz de volúpia, e não cheia de vento."
Marina Martins é
dançarina, coreógrafa,
diretora, professora e
pesquisadora



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