Crítica |
CRÍTICA
O LAGO DOS CISNES MUDAR OU NÃO MUDAR, EIS A QUESTÃO
Falar
de Lago é falar da tradição do ballet clássico
que leva mais de 11.000 pessoas ao teatro em nove espetáculos.
Os movimentos de cisne que Lev Ivanov concebeu para expressar a
dignidade melancólica da ave, os port-de-bras alisando
as penas, o tremor dos pés ao executar o petit battement
sur le cou-de-pied, tudo é notável nessa criação.
Ao fazer do corpo de baile o reflexo do mundo lírico de
Odette, de sua tristeza profética, Ivanov renovou, inspirado e
orientado por Marius Petipa, o tratamento dado ao conjunto. Foram
belas apresentações, mas diante da genialidade da obra
pergunta-se: vale a pena mudar por mudar? Quanto mais perto se está
dos gênios de Petipa e Ivanov menor o risco de errar. Natalia
Makarova, assim como Nureyev, Barishnikov, Vassiliev, Grigorovitch,
entre outros, inovaram. Acrescentaram com isso alguma coisa de
fundamental? Alguns momentos belíssimos dessa versão,
como o da passagem do 1º para o 2º ato, não
justificam muitos outros em que, invariavelmente, a suprema beleza do
original ou do que está mais próximo dele não é
atingida. Mudar a ordem da variação de Odette tira o
sentido de um solo perpassado pela premonição da
tragédia, por um desespero que só se impõe a
partir do momento em que a heroína e seu príncipe
trocam juras de amor no pas-de-deux. Os tutus,
enfeitados demais, maculam o mar de cisnes brancos, personificação
da pureza de Odette, agravado pelas malhas muito escuras. O 1º
ato é bem feito ainda que a figura do bobo da corte, típica
da época, faça falta; a variação de
Siegfried pode funcionar se colocada no fim do ato, como no Royal
Ballet. No 3º ato a entrada de Odyle não convence e sua
saída é imperceptível, embora a cena final seja
excelente: dramática e fantástica num ato que encerra
consigo, praticamente, o ballet, tal a força da sua
dramaticidade e a sabedoria de Petipa. O mistério que perpassa
Odette e Odyle mantém o espectador fascinado e explica a
perenidade dessa obra magistral. Seria Odyle uma criatura de Rothbart
ou simplesmente uma mulher capaz de atrair pela feminilidade e pela
vida um príncipe que queria ser dono de seu destino? No 4º
ato Makarova usou, da versão de Ashton/de Valois, uma das mais
lindas melodias de Tchaikovski, tão bela que não
entendemos porque é excluída das outras versões.
Contudo, mais uma vez o final não ficou bem resolvido: questão
também de lógica, não apenas de forma. O palco
vazio depois da morte dos heróis - tão de acordo com a
idéia e o temperamento do compositor, do sacrifício
pelo bem comum - sugere que Rothbart venceu a batalha; seu fim fica
repentino e inexplicável.
Os
bailarinos e as temporadas proporcionadas por essa direção
justificam a ida ao teatro muitas vezes. Svetlana Zakharova tem DNA
de Cisne. Seus braços parecem sair das costas; o corpo, todo
flexível, parece falar. Apaixonada, divina, usa, sempre que
possível, a coreografia que conhece detalhadamente. Jamais vi
tamanha ovação a uma variação de Odette
no Municipal. Do Cisne Negro, magnetizante, tirou, graças a
Deus, um balance preestabelecido, virtuosismo pessoal de Makarova,
que muitas vezes interfere negativamente na atuação da
bailarina para provocar delírio de fogos de artifício.
Thiago Soares, com sua deslumbrante juventude foi para a bailarina um
partner atento e emocionado. Como pode um rapaz de sua idade
assumir tamanha responsabilidade em tão pouco tempo de ensaios
e compreender tão bem como se comporta um bailarino nobre?
Nobre como figura, como interior e como qualidade de dança;
nenhuma concessão aparece em sua técnica pura, na
escola que denota sua iniciação bem feita. Os olhares
trocados entre os bailarinos chegaram à galeria, atingiram a
alma da gente. Nervosíssima, chorei. Dalal Achcar, é
preciso que se faça justiça, sempre teve coragem de
confiar no talento do artista brasileiro jovem. Pela primeira vez
deu-se a um bailarino nacional a chance de dançar com uma
grande estrela internacional. Cecília Kerche, em grande forma,
apresentou-se lindamente. Suas linhas são belas, sua técnica
está soberba e sua Odyle está bem construída
como personagem. Iñaque Urzilaga é um excelente
bailarino mas as noites foram de Cecília. O pas-de-trois do 1º
ato foi muito bem dançado, com destaque para Regina Ribeiro,
Cláudia Motta e Norma Pinna, apesar da falha no final da
variação, André Valadão e Vítor
Luiz, bailarino de estilo requintado. Marcelo Misailidis e Lourdja
Mesquita valorizam de maneira impressionante seus papéis.
Rodrigo Negri, Regina Ribeiro, Enéas Brandão, Beth
Alexandre, Laura Prochet, Edifrank Alves, Cristiane Quintan e Márcia
Faggioni destacam-se nas duas danças pelo temperamento e
entusiasmo. Lindos. Nada lindo são os rapazes que teimam em se
apresentar com o cabelo cortado à máquina zero e com
pouca ou quase nenhuma maquiagem. Moda é para modelo, não
para artistas cênicos. O corpo de baile, em que pese algumas
figuras inadequadas, atuou bem. Falhas do conjunto no adágio e
no pas-de-quatre podem ser atribuídas a modificações
coreográficas que não contribuem para a unidade do
corpo de baile; a valsa do 1º ato resultou bonita e foi sendo
dominada ao longo da temporada. Todos os méritos para a grande
ensaiadora Olga Evreinoff; saudade da poesia do Lago de Eugênia
Feodorova. A iluminação é maravilhosa e os
cenários são lindos. Não se pode dizer o mesmo
dos figurinos.
PS1: Ana Botafogo, o Brasil ama você.
PS2: Que fim levou o russo Vitor Fedotov? Será outra Margarita Routina?
PS3: Esclarecendo quanto à montagem de Lago na íntegra realizada por Eugênia Feodorova, ela não foi apenas a primeira do Brasil, mas a primeira das Américas e de praticamente todo o mundo ocidental, com exceção da Inglaterra que teve sua versão completa encenada em 1934.
Eliana
Caminada é professora de História da Dança na
UniverCidade
e
Universidade Castelo Branco
e
foi primeira bailarina do Theatro Municipal RJ
Página
pessoal: http://www.geocities.com/caminadabr