Crítica


‘A Megera Domada’, mais uma encenação memorável no Theatro Municipal do Rio, é a melhor resposta da companhia à reportagens e comentários desprovidos de conteúdo. Ainda que não pudéssemos assistir às performances de todos os companheiros, dentre os quais Ana Botafogo, Áurea Hammerli, Renata Versiani, Francisco Timbó e Filipe Barankiewiec, pudemos verificar, com alegria, o quanto nossa companhia está amadurecida, quanto talento estamos produzindo e o quanto somos capazes de auto-superação. Afinal sabe-se que o tempo de montagem do ballet foi bastante exíguo para o nível de dificuldades a serem superadas e que a atuação de todos surpreendeu até aos ensaiadores.
Apesar de se mostrar um tanto fora de forma física, André Valadão  teve boa atuação como Petrucchio ao lado da linda Roberta Marques, surpreendentemente mais à vontade como Megera do que no pas-de-deux final. Faltou-lhe um pouco mais de sensualidade; é como se Katharina estivesse domada mas não realizada. Questão de tempo e de maturidade. Cláudia Motta excelente aproximando-se da irretocável atuação de Norma Pinna, absoluta na Bianca. Ambas compreenderam muito bem aquela irmã de Katharina, sonsa e dissimulada, marcando com clareza as nuances pelas quais vai passando o personagem. Já Bettina Dalcanale, muito bonita, foi um pouco linear na sua interpretação. Paulo Argüeles muito à vontade como Grêmio, papel valorizado também por Santiago Júnior. Thiago Soares pareceu um pouco perdido como Lutencio; por vezes um inesperado ‘bailarino nobre’ surgia no lugar do personagem. Mas seu talento é inegável e essa imaturidade é natural aos vinte anos. Como ele, todos precisamos estudar mais para compor tipos desse porte e compreender seu significado na vida de artistas cênicos. Roberto Lima, Lourdja Mesquita e Shirley Pereira nos seus respectivos papéis, sem falar nos rapazes da ‘casa de Petrucchio’, sabem disso muito bem e oferecem, para os mais observadores, uma lição sobre as inúmeras possibilidades que a arte do ballet oferece além de tours e fouettés. E foi, justamente amparado por seu extraordinário talento teatral, que Marcelo Misailidis retornou em grande estilo, fazendo de Petrucchio uma composição inesquecível que supera até eventuais dificuldades técnicas. Em matéria de mise en scène Misailidis é professor; seu Petrucchio é viril, sedutor e integrado à companhia. O mesmo não se pôde falar de Fernanda Diniz, com uma boa participação no 1º ato mas totalmente ausente no 2º.
Ter uma obra como Megera Domada no repertório é uma honra para o Corpo de Baile. ‘Megera’ é obra de gênio nos mínimos detalhes; as interferências do corpo de baile são fantásticas, os personagens não podem ser melhor desenhados. Música e trajes, estranhos no início, revelam-se perfeitos para uma criação que, diga-se de passagem, não é para ser vista uma única vez.
Só o Rio nos proporciona um espetáculo como esse interpretado por artistas brasileiros. Um privilégio sim! Parafraseando um comentário de mau-gosto feito sobre o Corpo de Baile do Municipal do Rio, ele não é um computador para rodar programas seja de que número for, até porque não corrompe arquivos ou comete erros fatais; também não é elemento radioativo mas uma casa com um significado histórico de transcendental importância para o país. Por isso mesmo é necessário que os artistas não levem para a cena seus problemas pessoais. Artista é um ‘hypocrites’ – ator, do grego ‘aquele que finge’ – e não tem o direito de punir o público, elemento da maior importância na hierarquia dos nossos objetivos, em nome do que quer que seja.
Atenção, quando desdenhamos personagens importantes, sobretudo em se tratando de uma peça de Shakespeare denotamos, no mínimo falta de cultura geral. Cranko ficaria perplexo se visse os papéis que criou com tanto talento e inspiração para os bailarinos que mais amou serem esnobados por jovens que deveriam aproveitar a chance de tomar parte num espetáculo referencial de criação artística no mundo todo. Defendo há anos os companheiros no espaço que este jornal me oferece, mas não posso deixar de fazer uma advertência: ou amadurecemos, estudamos e adquirimos um mínimo de bom senso ou destruímos a companhia e nossas próprias carreiras individuais.
PS: Roberta Marques acabou de ganhar medalha de prata no Concurso Internacional de Moscou e Thiago Soares trouxe nada menos do que o ouro. O que nos faltou na Olimpíada nos chega no ballet. Parabéns meninos, vocês são 10.
Eliana Caminada é professora de História da Dança na UniverCidade
e Universidade Castelo Branco e foi primeira
bailarina doTheatro Municipal – RJ
Página pessoal:  http://www.geocities.com/caminadabr/index.html

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