Crítica


Como uma Phoenix
Já faz parte do folclore: os idiotas da objetividade - genial expressão cunhada por Nelson Rodrigues - com seus arautos apocalípticos continuam decretando a morte do Corpo de Baile do Theatro Municipal do Rio. Mas tradição é tradição e ao longo dos mais de setenta anos de nossa principal companhia, como uma Phoenix, ela renasce sempre, revelando artistas, surpreendendo, superando expectativas.
Essa curta temporada de outubro nada mais fez do que reafirmar o que já ficara tão evidente em ‘La Bayadère’: a qualidade de nosso elenco. Temos mostrado um nível tão alto de execução, que poderíamos nos apresentar em grandes centros de dança no mínimo com dignidade, para sermos modestos. Mário de Andrade afirmava se referindo aos nossos artistas músicos: - ‘São numerosíssimos os virtuoses brasileiros ‘nacionais’, quero dizer: esse gênero de intérpretes, mais útil, mais humano e fecundo, cuja vida artística funciona dentro dos limites da pátria...’ O mesmo comentário pode ser estendido aos valorosos bailarinos brasileiros, internacionais porque bons e impregnados da nacionalidade que enriquece a obra universal.
Dos rapazes - Thiago Soares, Rodrigo Negri, Enéas Brandão, Joseni Coutinho e Paulo Ricardo, excelentes como figura, qualidade de dança e competência como partners - a Ana Botafogo com seu notável carisma, passando pelas linhas privilegiadas de Cecília Kerche e Bettina Dalcanale, chegando a atuação musical, brilhante de Regina Ribeiro, sem falar em Norma Pinna, em noite especialmente exuberante, surpreendendo até aos que mais apostam no seu talento, tudo foi perfeito na belíssima criação neoclássica de Vicente Nebrada, ‘Nossas valsas’. Aí Nebrada transita no melhor estilo Jerome Robbins sem perder, contudo, a marca pessoal que identifica um criador; detalhes absolutamente peculiares imbuídos de latinidade conferem um sutil toque sentimental à obra, perfeito para a linda música de Teresa Carreño. O remontador, Alfredo Garcia, e os ensaiadores Irene Orazem e Slava Mouchamedov cumpriram com brilho seus papéis e extraíram o melhor dos nossos artistas. A escolha de ‘Nossas Valsas’ revelou-se perfeita para uma companhia que está em grande forma; faço votos que mantenha-se no repertório.
Outro grande momento do espetáculo foi o desempenho emocionante de Nora Esteves no inspirado duo de Luís Arrieta, ‘Pavane’, de Maurice Ravel, comunicando uma espiritualidade até então desconhecida em sua dança. Ao seu lado Bruno Cesário, segurando muito bem e expressando-se com sua natural plasticidade, abriu auspiciosamente a noite de estréia.
Renato Vieira,  coreógrafo de ‘O Boto e a Rosa’ possui, sem dúvida, criações mais felizes; o potencial de Renata Versiani foi pouco aproveitado e só o talento de Bruno Cesário não justifica um ballet que parece ultrapassado como concepção. Mas a aprovação do público justifica o prosseguimento do trabalho, não só de Vieira, mas de outros coreógrafos, independente de tendências. É fora de questão que nossos criadores precisam exercitar-se em companhias de grande porte, merecem, pelo muito que têm criado, trabalhar com artistas de formação altamente eclética. E que encontrem uma companhia consciente de que deve estar aberta para interpretar e incluir no seu repertório todos os estilos, correndo riscos, acertando ou não. Somos brasileiros no Brasil, não desperdicemos um só artista; não concedamos a honra da descoberta e do reconhecimento do talento brasileiro a estrangeiros como temos feito historicamente.
Concluindo, o Corpo de Baile do Theatro Municipal continua, gostem ou não algumas correntes ligadas à dança, cumprindo o papel institucional e artístico de levar ao público os grandes espetáculos de ballet que, ao lado da música, da literatura, da escultura e da pintura dos grandes mestres fazem parte do inestimável legado da humanidade a todas as gerações, devolvendo-nos a poesia e a emoção da qual a pós-modernidade parece, tantas vezes, tão distanciada.
PS: Por motivo de força maior não foi possível assistir ‘Aura’ de Ismael Ivo.
 
Eliana Caminada é professora de História da Dança na
UniverCidade e Universidade Castelo Branco
e foi primeira bailarina do Theatro Municipal – RJ
Página pessoal:  http://www.geocities.com/caminadabr/index.html

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