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LA BAYADÈRE – UMA MONTAGEM HISTÓRICA
Assistir a um espetáculo de ballet
no Theatro Municipal do Rio, desde o momento em que a orquestra começa
a afinar seus instrumentos é como ser introduzido num ritual de
iniciação. Enquanto co-partícipes do rito teatral
somos invadidos pelo sentimento de que viver nesta cidade linda, insubstituível
como metrópole cosmopolita que consegue abrigar tendências
vanguardistas sem se perder de sua tradição, é um
privilégio. Ao escolher ‘La Bayadère’, uma das criações
imortais de Marius Petipa, síntese da mais pura dança acadêmica
e do romantismo tardio da segunda metade do século XIX na sua versão
mais bela, a de Natalia Makarova, Dalal Achcar colocou em cena um dos mais
perfeitos espetáculos jamais protagonizados pela nossa única
companhia clássica apresentando-a com os maravilhosos cenários
e figurinos da produção argentina. Contratando uma ensaiadora
profundamente conhecedora da obra, Olga Evreinoff, conseguiu o melhor rendimento
de nossos bailarinos privilegiados até com a regência de Gustavo
Plis-Steremberg, ambos ligados a São Petersburgo, ou seja, ao melhor
da arte acadêmica.
Mas não ficou só nisso. Quem
sabe ousa e remontadores, ensaiadores e diretores ousaram com os jovens
Roberta Marquez e Thiago Soares revelando ao público dois talentos
excepcionais, jovens plenos de juventude, temperamento, musicalidade e
técnica.
A pré-estréia foi quase perfeita.
Uma pequena deficiência do naipe masculino e algumas figuras pouco
adequadas na primeira fila do ‘Ato das Sombras’, bastante valorizado pelos
solos bem dançados por Norma Pinna, Regina Ribeiro, Renata Versiani
e Márcia Jaqueline, não chegaram a pesar num espetáculo
que atingiu momentos de raro brilho. Santiago Junior na difícil
variação do ‘Ídolo’ foi excelente; Bruno Cesário
mesmo jovem demais para um papel como o do ‘Grande Brâmane’, convenceu
com um gestual consistente e verdadeiro; Lourdja Mesquita e Hélio
Bejani mostraram, mais uma vez, que sabem exatamente como e o que fazer
num palco; Marcelo Mallet defendeu com garra e energia o ‘Magdayeva, Chefe
dos Faquires’; as bailadeiras da 2ª cena do 1º ato e os solistas
do ‘Pas D’Action’ estiveram ótimos; Cláudia Motta foi uma
Gamzatti forte, presente, tem muito futuro pela frente apesar de pequenas
e inexplicáveis falhas; André Valadão superou com
dignidade um phisique du role pouco adequado para o guerreiro Solor e se
impôs como personagem, tanto técnica quanto artisticamente,
revelando enorme progresso como bailarino acadêmico; de resto, numa
temporada inesquecível, toda a companhia apresentou-se muito bem,
provando, de novo, que só precisa de boa orientação
e muitas temporadas. Ousaria dizer que nossa performance foi muito mais
convincente do que a do American Ballet Theatre vista aqui bem recentemente.
Roberta Marquez é um produto típico
deste Brasil que surpreende. Que ela é linda, super dotada de condições
naturais, todo mundo sempre soube; o que ela mostrou, porém, transcende
o óbvio. Marquez transmite emoção, acabamento e maturidade
espantosas para uma bailarina tão jovem. Sua interpretação
da morte de ‘Nikiya’ fez grande parte do público chorar. As dificílimas
cenas inteiras descritivas, somente mimadas de ‘La Bayadère’, onde
pernas, pés e técnica de pouco valem, nos fazem lembrar da
figura histórica de Jean-Georges Noverre, para quem a dança
é a arte de executar bem os passos e a pantomima a arte de expressar
as emoções. Pois nossos artistas interpretaram a pantomima
com verdade e dançaram quando a hora era a de executar passos.
Thiago Soares não fica atrás
e o público presente à estréia logo reconheceu e consagrou
sua dança nobre, arrojada e ardente, numa noite em que as estrelas,
distantes dos seus personagens, não corresponderam. Soares inspira
qualquer coreógrafo, qualquer bailarina. Com ele e Marquez estamos
diante do chamado milagre brasileiro: o de ter tudo para dar errado, o
de quase nada conhecer pela carência de espetáculos e de investimento
em dança clássica, o de pouco entrar em cena, o de lutar
contra dificuldades financeiras, o de ser brasileiro no Brasil e apesar
de tudo Ser.
‘La Bayadère’ na íntegra constitui-se
num momento indiscutível do Corpo de Baile do Theatro Municipal
do Rio, enriquece seu importante acervo, dignifica qualquer direção.
Que o destino desta obra seja diferente: que ela continue a ser encenada,
que se invista, a partir desse sucesso, na nossa própria produção.
Vale a pena. E que esta temporada tenha servido para convencer a todos
de que não temos a menor necessidade de gastar dinheiro com artistas
estrangeiros iniciantes, sem xenofobia; não temos tempo a perder,
temos talentos a revelar. Que estrangeiros sejam bem vindos quando for
para contribuir, não para tirar nossas poucas chances.
Eliana Caminada
é professora de História da Dança na UniverCidade
e Universidade Castelo
Branco e foi primeira bailarina do Theatro
Municipal – RJ (http://membro.intermega.com.br/caminada)