CONSIDERANDO O SALÃO |
FIM DE FESTA
Duas horas da manhã no salão vazio permanece a vibração do baile. O garçom sonolento recolhe os últimos arranjos nas mesas próximas. Das janelas abertas a brisa fresca da noite gela a camisa úmida.
Na varanda um vulto solitário parece não ter pressa. Ele acena e se aproxima, o rapaz ao meu lado pergunta:
E aí?
Cansado.
É. O baile foi bom.
Não muito. Mais gente convidada que pagantes.
Tá apertado prá todo mundo.
É, mas na dança a coisa tá feia. Muita concorrência, mercado pequeno. Só se dá bem quem é diferente ou tem nome na mídia.
Também não é assim.
É pior. Faço apresentação em qualquer lugar, cubro preço, qualquer coisa. Se o cara quer show, esqueço a técnica, só faço vôo, pegadas e acrobacias. Já estou até fazendo estrela! Já não livro a cara nem de amigo. Dou cartão na academia e nos bailes dos colegas. Não danço mais por prazer é sempre uma demonstração prá ver se descolo uma aula particular, um aluno novo.
Que isso, cara. Esse tiro pode sair pela culatra: afastar mais que atrair alunos. Tá todo mundo nessa?
Alguns ainda resistem. Mas tem gente mudando de profissão, fechando escola. Tá difícil mesmo. O jeito é apelar.
Mas você já pensou em se reunir para tentar soluções e parcerias que ajudem, que aumentem o mercado e dêem novas oportunidades? Coisas de marketing, de eventos, de trocas?
Pirou. Alguém vai dar mole? É cada um por si e salve-se quem puder. Essa história de participação e trabalho de equipe é coisa de livro.
Bem, acho que não custa tentar. Mas agora com as férias, um descanso e as coisas melhoram.
Melhora nada! A gente não tem descanso, nada de férias com a família. Já não sei a quanto tempo não leio, não vou ao cinema ou pego uma praia. E ainda tem aluno pedindo desconto, por que vai viajar. O papo tá bom, mas vou dançar a saideira.
Ele sai devagar, cruza o salão, devagar. Escolhe um cd, convida a dama e começa a dançar. E dança muito. Passos que já não mostra e não ensina. Pura técnica e prazer. O corpo esguio, em total sintonia com a música, esquece o cansaço, torna-se ágil e criativo. É energia e sensibilidade. É só emoção e movimento.
De repente, pára, o olhar no vazio. Baixa a cabeça, antes altiva, sem terminar a música, pede desculpas à parceira. Os dois vão embora.
Fico ali, quieto, parado. Tento esquecer o cara derrotado, corrompido e que não se dá conta que está vendendo a alma e assim mesmo está perdendo.
Tento acreditar que é só um momento. Que ele e outros tantos vão voltar e resgatar seus ideais.
Tento guardar a melhor imagem: a do dançarino que ama sua arte e sente falta de fazê-la com respeito e qualidade. Acredito. Preciso acreditar. É isso que me faz resistir.