COLUNA DA CAMINADA


ENÉAS BRANDÃO E CLÁUDIA MOTTA, TALENTOS EM DESTAQUE


A nova geração de bailarinos do Theatro Municipal do Rio vem desmentindo a eterna afirmação de que o ballet morreu. Cada temporada revela ou reafirma a presença de artistas que nada ficam a dever a estrangeiros e ‘estrangeiros’, até porque podem, eles mesmos, ocupar um espaço de relevo em qualquer companhia do mundo. É o caso, certamente, de Cláudia Motta e Enéas Brandão. Uma das duplas mais harmônicas do Corpo de Baile ambos se apresentaram na última temporada de "O Quebra-Nozes" com excelentes atuações merecendo os aplausos do público, ainda que não tenham despertado o menor interesse da grande mídia. Mas esta, pobre de espírito e de conhecimento, ignora o valor artístico e histórico até de uma realização como a de Emílio Martins, aplaudido de pé à frente do Ballet Bolshoi de Moscou, a medalha de ouro de Thiago Soares na mesma cidade, suas atuações como bailarino convidado do Ballet Kirov e de outras companhias referenciais. Em matéria de ballet a mídia é a ‘Viúva das narinas de cadáver’, personagem do Nelson Rodrigues, que indo pela primeira vez ao Maracanã perguntou: ‘Quem é a bola?’

Claudia Motta começou a estudar ballet com Valéria Moreyra, e o fez com ela por muitos anos, até ingressar na Escola de Danças Maria Olenewa. ‘- Eu não tinha qualquer afinidade com as crianças de minha idade. Nasci velha’. (Risos) A tentativa de fazer ginástica olímpica não vingou; na briga pelas horas vagas o ballet levou a melhor. Na Escola passou por diversos professores, e os cita com admiração, mas guarda um carinho especial por Pedro Kraszczuk, com quem se formou, e por Amélia Moreira e Regina Bertelli, falecida precocemente – ‘- elas foram a minha base’, relembra.

Formada, viajou com a intenção de dançar fora do Brasil. Qual! Cláudia jamais se acostumou a viver distante de sua família e de seu país. Preparada por Miriam Guimarães e Sérgio Lobato, hoje seu marido, prestou um exame para o Municipal que jamais deixou margens a dúvidas sobre seu valor. Declara sem rodeios: ‘- Adoro viajar, dançar para outras platéias, dar autógrafos, conhecer outros palcos sabendo que vou voltar e para onde. Além disso nada supera o Theatro Municipal, sua arquitetura, seu carisma, seu público, seus funcionários, técnicos, camareiras, no meu coração. A roupa passada, a estrutura de grande teatro que ele indiscutivelmente possui, tudo isso faz dele a minha casa, o lugar onde sempre quis entrar e permanecer. Dançar no Municipal com o Corpo de Baile é como ver televisão em casa. E é uma conquista conseguir fazer parte do seu elenco, dançar os pequenos solos, ganhar os primeiros papéis importantes, trabalhar com vários mâitres-de-ballet, ensaiadores e coreógrafos. É uma formação superior em dança’. Ana Botafogo e Cecília Kerche são outro motivo de permanente encanto. ‘ - Para mim elas continuam mitos, possuem a mesma força de quando as assisti pela primeira vez. Conviver com elas é um privilégio. Dizem que o Theatro é mafioso, tem rivalidade além das que existem em outros lugares. Será? Não seria a permanente necessidade de superação de limites que só conhece quem pertence a uma companhia de grande porte? O verdadeiro problema ainda passa pelo número reduzido de apresentações. Lógico, se tem mais bailarinos que espetáculos vai existir um constrangimento pontual, momentâneo. Mas quando o espetáculo começa é um por todos, todos por um. Aconteceu recentemente, no ato do Reino das Neves: a grande quantidade de gelo seco sempre me deixa insegura, não consigo enxergar claramente o palco. Logo na estréia um dos técnicos surgiu a meu lado e, segurando minha mão procurou me tranqüilizar. Procurei-o, depois disso, todos os dias. Existe um cuidado conosco. Sabe, Caminada, tive chance de ficar na França, fui do Ballet de Camaguei e adorei Fernando Alonso, grande professor e ensaiador. Não quis. Pertenci ao Grupo Corpo, experiência que detestei e que jamais repetiria, apesar de reconhecer o bom nível profissional da companhia. Eu vivia machucada’.

Continua relembrando: ‘Foi de Tatiana Leskova que recebi minha primeira grande chance: dancei a ‘Paixão’ em ‘Les Prèsages’ de Leonid Massine. Chorei em cena. Mas minhas grandes descobridoras e incentivadoras foram Dalal Achcar e Maria Luíza Noronha. Delas tenho recebido amizade, respeito, estímulo e orientação. Nesses seis anos de companhia acho que já consegui muito, interpretei papéis de extraordinária importância como Myrtha, Gamzatti, Bianca, Fada Açucarada’.

Interrompo: ‘E dançou muito bem, daí a entrevista. Sempre apreciei o chique da sua dança, a correção de sua escola, a colocação de seus braços, um aspecto desprezado por tantos bailarinos. Houvessem mais espetáculos de Lago e você, certamente, teria dançado Odette-Odyle’. Cláudia responde: ‘ É verdade, estive bem perto disso. Cheguei a ensaiar o papel. Mas acho que, de fato, ainda não era o momento. Quem dança o papel principal de Lago não pode atuar em outros no mesmo ballet. É extenuante demais para o físico e para a cabeça. Apenas quero sempre estar pronta na hora exata até como uma resposta aos que pretendam associar minhas oportunidades ao afeto que me liga e a meu marido à direção. Até isto tenho precisado superar’.

Peço a Cláudia que nos fale de Sérgio, e ela arremata nossa conversa com uma bela declaração: ‘- Ele tem sido tudo na minha vida: meu amor, meu professor, meu ensaiador, meu amigo. Sei que nosso casamento é um encontro mesmo, que estamos sintonizados na mesma freqüência.


O Bailarino Nobre


Enéas Brandão não escapou do velho preconceito em relação ao ballet clássico e começou a dançar aprendendo jazz. Não houve jeito, ele era um escolhido. O próprio ballet se incumbiu de colocar na sua vida a figura extraordinária de Toshie Kobaiashi. Foi Gláucia Fidelis, aluna de Toshie quem avisou: ‘- D. Toshie, tem um rapaz super talentoso na minha turma de jazz’.

E Toshie perfilhou Enéas. Trabalhou aquele físico privilegiado, mimou-o, ensinou-lhe tudo e, generosamente, encaminhou-o para o único teatro no Brasil onde ele poderia desenvolver uma carreira como bailarino clássico. Mais que isso, como um bailarino nobre: o Municipal do Rio.

Aqui chegando Enéas causou logo sensação. Sua primeira atuação foi com a Escola Maria Olenewa, inexperiente ainda, mas já um príncipe de aparência e de qualidade de dança. A maturidade deu-lhe uma dança mais viril, os momentos difíceis que viveu acentuaram-lhe o temperamento; a musicalidade é prodigiosa – ‘um primeiro violino, Caminada’, diz Toshie.

Pierre Lacotte, então montando sua versão de ‘La Sylphide’, logo notou aquele jovem e colocou-o no pas-de-deux do 1º ato; fez mais: deu-lhe James, o papel principal. Pouco depois, sua estréia em ‘Giselle’ marcava a presença de um indiscutível primeiro-bailarino. Ainda não era o partner de hoje, sua dança ainda era imatura, mas o danseur noble estava ali, com a escola imprescindível para quem pretende dançar ballets de repertório, com trabalho refinado, um belo e raro exemplar de bailarino.

O reconhecimento internacional não demorou. Dalal Achcar viu em Enéas a possibilidade de um Brasil bem representado no Concurso de Varna. Não se enganara. O garoto Enéas, exaustivamente ensaiado por Toshie, nos trouxe o bronze. Os convites começaram a acontecer: Concurso de Osaka no Japão, papéis no Theatro Municipal, convites para companhias fora do Brasil.

Foi difícil. Enéas não estava preparado para todo esse sucesso. Talvez tenha tido medo. Recuou. Voltou para São Paulo. Desapareceu. O ballet foi atrás dele. Como resistir? Agora ele está de volta, maduro, lindo, sua presença no conjunto desestabiliza; destaca-se demais. Sabemos que retornou para sempre.

Claudia e Enéas formam o que chamamos ‘química perfeita’. Um completa o outro. Conhecem-se desde muito jovens; longilíneos, combinam até fisicamente.


Um ponto de vista


Esta bailarina sente-se feliz por registrar as trajetórias de nossos jovens valores. E chama a atenção para o apoio e independência incondicionais que recebe da direção do jornal Dança, Arte & Ação. Graças a este espaço não se cansa nem teme afirmar que o Theatro Municipal do Rio tem um perfil incomparável, gostem ou não os que estão de fora. Muitos são os que passam a vida malhando sua estrutura, seus artistas, suas direções, seu acervo, sua tradição; ele já foi chamado até de computador 386. Sua história, entretanto, continua a ser contada; inexoravelmente.

Se a raposa não alcança as uvas diz que elas estão verdes. Adoro fábulas!!! O velho Municipal do Rio tem uma história. E ponto final.



Enéas Brandão e Cláudia Motta abraçam Dalal Achcar


Eliana Caminada é professora de História da Dança na UniverCidade e Universidade Castelo Branco

e foi primeira bailarina do Theatro Municipal – RJ

Página pessoal: http://www.geocities.com/caminadabr



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