COLUNA DA CAMINADA


MUITA DANÇA
1. Reafirmação: Num mês em que o público carioca teve oportunidade de rever Regina Miranda, Victor Navarro, Fábio de Mello, Roberto Oliveira, vemos como reafirmação do nosso talento, o prêmio do “Bonnie Bird Choreography Fund do Laban Centre” de Londres concedido a Carlota Portella, e que lhe valeu, além do cachê, um convite para coreografar para a Transitions Dance Company também sediada em Londres. Carlota e a Cia. Vacilou Dançou são, há duas décadas, sinônimo de trabalho sério e ininterrupto. Sua participação no VII Rencontres Choreographiques Internationales – 2000 França, apenas reafirma o que a categoria e o público, em geral, sempre reconheceram. Único país da América Latina a ser selecionado entre 42 países, após 32 plataformas, o Brasil foi representado por "Grito", da própria Portella, trabalho que integrou o espetáculo ‘Visões’ que reputo o melhor do ano de 1999.
O acontecimento merece uma reflexão séria sobre o talento do povo brasileiro e sobre sua participação no cenário internacional da dança. Para os mais jovens ou para os esquecidos: Beatriz Consuelo foi étoille do Grand Ballet du Marquis de Cuevas, Ady Addor foi estrela do American Ballet Theatre, Renato Magalhães teve trabalhos seus levados até no palco do Teatro Bolshoi com o excelente Ballet del Nuevo Mundo de Caracas, Emílio Martins está indo remontar "La fille mal gardée" de Frederic Ashton na China - um feito, sem dúvida - sem falar em Márcia Haydée, é claro, para só mencionar cinco grandes artistas brasileiros com trajetórias acima de julgamentos. Pena que um povo tão criativo, tão peculiar, desconheça o que é auto-estima, não saiba o que é respeito pela sua própria história e pelos seus ídolos.
2. Dia 09 de junho na UERJ, Dino Carrera, dando continuidade à seqüência de galas que fazem justiça a importantes nomes da dança no Brasil, homenageou Ana Botafogo. Já declarei publicamente minha perplexidade diante da magia de Ana, de sua capacidade transformadora. A química que se estabelece no teatro durante suas atuações atinge a companhia, o público, atinge a própria orquestra. Ana Botafogo dispensa explicações, é uma subversiva da lógica, é dionisíaca quando dança. Louvável a coordenação artística de Sérgio Lobato, mostrando que nossos jovens bailarinos não só estão cada vez melhores, como vêm de todos os lugares do Brasil. Observação: Uma das marcas da genialidade de Lev Ivanov foi a perfeita interpretação musical de duas peças de Tchaikovski: o pas-de-quatre do 2º ato de ‘O Lado dos Cisnes’ e a variação da Fada Açucarada de ‘O Quebra-Nozes’. Em ambas ele percebeu que a nota tônica, ao contrário do usual, não caia na primeira nota da melodia mas no contratempo; usou então o último tempo fracos dos acordes introdutórios, criando obras definitivas. Esta marca registrada não foi respeitada, justamente pela Escola Maria Olenewa, uma das maiores referências do ensino da dança clássica do país; o pas-de-quatre apresentado foi absolutamente anti-musical e consequentemente sem a menor unidade. Ora, numa gala tão bonita, tão didática, quem remonta tem obrigação de saber para transmitir às crianças o que é universalmente adotado. O mesmo se pode falar da mazurka do 3º ato de "A Bela Adormecida", toda marcada com passo de polonaise, motivo de comentário negativo de inúmeros bailarinos presentes conhecedores, eles sim, desses ballets. CUIDADO!!!
3. Boas notícias para a dança. O Balé Guaíra, dirigido pela conceituada crítica e bailarina brasileira Suzana Braga, começou sua turnê nacional. No roteiro São Paulo, São Caetano, Recife, Salvador, Fortaleza, Aracaju e Joinville. O Rio de Janeiro também está aguardando esta companhia oficial que, apesar de estável não é estática. Do seu excelente repertório, resolveu-se, acertadamente, remontar verdadeiros clássicos, tais como "Exultate Jubilate" de Vasko Wellenkamp e "Treze Gestos de um Corpo" de Olga Roriz, além do bem sucedido, "O segundo Sopro", de Roseli Rodrigues, estreado em 1999. Os espetáculos vêm sendo realizados, não somente nos principais teatros das cidades visitadas, mas também em grandes espaços ao ar livre, filosofia sempre adotada, tanto pelo ballet russo quanto por Béjart, entre outros, perfeita para a beleza e para o clima do nosso país e para a carência e sensibilidade do nosso povo.
Em agosto três coreógrafos, simultaneamente, criarão "Eternamente Bach", homenagem aos 250 anos do nascimento do compositor considerado para a música como Cristo para a grande parte da humanidade: antes e depois dele.
4. Tive oportunidade de assistir ao ensaio dirigido por Maria Angélica Fiorani com os bailarinos do recém-criado Ballet Jovem, dirigido por Mariza Estrella. Que competente profissional, que correções preciosas e raras, tão pouco observadas nestes tempos de distanciamento do ballet-poesia, do ballet sinônimo de refinamento. Não consegui me conter, também, diante da exuberância, sobretudo dos rapazes, em geral. Wellington Botellho executa a ingrata e dificílima variação de 3º ato de ‘A Bela Adormecida’ com técnica de causar espanto; João Paulo Magalhães, por seu lado, dança a maior variação de "Pássaro Azul" que já vimos, com entrechat-huits, belos tours e, no rosto...bem, no rosto, uma expressão de êxtase que lembra Nijinski. Lindo! Voltaremos ao assunto.
5. O Seminário de Dança de Brasília promovido por Gisele Santoro está fazendo aniversário neste mês de julho e é preciso admitir que já se transformou num evento definitivo, e dos mais importantes, do calendário da dança em nível nacional. Vários bailarinos já foram contemplados com bolsas para o exterior através desse projeto, que reúne grandes mestres internacionais de vários estilos de dança, sem falar na oportunidade anual de participar de espetáculos de encerramento do evento dançando obras do repertório acadêmico. E melhor que tudo, remontados por profissionais de fato, mâitres-de-ballet preparados para tal, não vídeo-ensaiadores. Neste ano visitam a capital Gary Abbott, Vera Timachova, Alexander Gorbacevitch, Galina Schliapina, Brian Nolan, Luigi Repetto, além de grandes pianistas acompanhadores – isto existe pessoal, é uma especialização muito valorizada no exterior – como Yevgueni Feldman e Gert Müller. Danças populares também são contempladas: Cecilia Pascual está escalada para ensinar tango, Maria Dolores Montejano para o Flamenco – dança que já tomou conta do mundo faz tempo – e Nuriah ministra um workshop abordando técnicas de Danças e Percussão Orientais, inclusive a célebre e histórica dança de espadas.
É interessante observar como países de diferentes continentes investem na divulgação dos seus professores, dos seus métodos de ensino e nas suas danças nacionais. Por isso mesmo não há outros brasileiros além de Gisele Santoro – mãe e filha - participando do Seminário. Desde quando o Brasil investe em cultura, desde quando a cultura chamada erudita é considerada importante para nossas autoridades? Até quando a erudição será considerada um defeito, uma interferência na ‘pureza cultural’ de nosso povo, até quando ele será subestimado?
Os Santoro – Claúdio Santoro, marido de Gisele, é uma das principais referências universais da música erudita do século XX – deram e continuam dando uma contribuição inestimável à cultura brasileira; são uma família de artistas, músicos e bailarinos. Voltaremos ao assunto até porque o Seminário, apesar do Brasil oficial, começa a dar bons frutos. Uma companhia clássica, a Dance 2000 Cia. de Dança, foi fundada e significa um sinal de que nem tudo está perdido, de que alguém ainda reúne forças e idealismo para tentar prosseguir, dotando nosso país de um projeto que de há muito se faz necessário e dando esperanças aos bailarinos de formação acadêmica de poder utilizar a técnica mais competente que já foi criada para servir à arte do movimento, em espetáculos de ballet clássico, neoclássico, romântico, contemporâneo, sem preconceitos de qualquer ordem.
6. ‘... declaro que, por convicção profunda, considero a Arte a missão mais elevada e a atividade essencialmente metafísica da vida humana, no que acompanho o pensamento do artista a quem dedico este trabalho, meu nobre companheiro de armas, meu precursor neste difícil caminho". Fragmento do prefácio de Nietzsche a Richard Wagner no seu livro ‘A origem da tragédia’.
7. Sempre emprestando um aspecto didático e prestigiando companheiros mais antigos nos seus eventos, Cláudio Figueira realizou nos dias 16, 17 e 18 na UERJ, mais um Festival do Corpo. Na banca de jurados Wanda Garcia, Letícia Freire e esta bailarina. Alguns bons trabalhos foram apresentados por coreógrafos contemporâneos; já a parte acadêmica há muito tempo vem sinalizando para o talento e criatividade de Heron Nobre, destaque que já vem obtendo reconhecimento fora do Brasil.
Recentemente, assistindo ao vídeo do Festival de Moscou de 1969, tornamos a ouvir a tradução das palavras de Galina Ulanova, uma das maiores figuras da história do ballet russo de todos os tempos, a propósito do esforço de Patrice Bart, bailarino que se tornaria étoille da Ópera de Paris, para se apresentar, após uma lesão inesperada na hora de entrar em cena. De sua generosidade, auto controle e respeito profissional dependia a apresentação de sua colega – tornou-se igualmente famosa - Francesca Zumbo. Ulanova disse mais ou menos assim: "Um Festival competitivo não é uma mera mostra de habilidades ou de marcas atléticas; é também uma afirmação do caráter, da perseverança e da auto superação de um bailarino’.
Eliana Caminada é professora de História da Dança na
UniverCidade e Universidade Castelo Branco
e foi primeira bailarina do
Theatro Municipal - RJ
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