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Jornal DAA - Col. da Caminada - 62

COLUNA DA CAMINADA


O CENTENÁRIO DE BALANCHINE

 

 

                No dia 22 de janeiro os Estados Unidos deram início às homenagens com que se festeja, esse ano de 2004, o centenário de nascimento de George Balanchine. Um ano não é realmente demais, quando se trata  de comemorar e remontar a obra desse coreógrafo tão genial quanto fecundo. Autor de mais de 400 criações, Mr. B, como foi carinhosamente chamado pelos discípulos, precisaria de uns duzentos espetáculos para ter sua obra apresentada na íntegra.

Na verdade, as celebrações começaram em novembro passado, quando o prefeito de Nova Iorque, Michael Bloombergd, inaugurou a exposição "The enduring legacy of George Balanchine" na New York Library for the Performing Arts. É o reconhecimento dos Estados Unidos ao construtor de uma de suas maiores contribuições para a arte do século XX.

Mais do que o criador da chamada escola norte-americana de ballet e da companhia mais caracteristicamente estadunidense, o New York City Ballet, Balanchine foi o deflagrador do movimento neoclassicista na dança e seu mais legítimo representante. 

Georgi Melitonovitch Balanchivadze (1904-1983) nasceu em São Petersburgo. Começou a estudar dança em 1914, na Escola do Teatro Imperial, o Mariinski, quintessência da mais pura tradição do ballet clássico, onde se graduou em 1921.  Paralelamente, cursou o Conservatório de Música do mesmo teatro adquirindo sólido conhecimento de música. Estudou piano, contraponto, teoria e composição, chegando a ter dúvidas sobre sua opção profissional. Decidiu-se pela dança, mas o futuro revelaria a importância desse back-ground em sua vida: transpor partituras complexas para o piano e interpretá-las em profundidade tornou-se a marca registrada de sua criação, sempre marcada por estruturas independentes de dança pura.

Suas primeiras coreografias, realizadas entre 1920 e 1923, apresentadas por um grupo de câmara que formara com alguns companheiros, foram pouco aceitas e consideradas excessivamente "avant-garde". Em 1924, a autorização do governo soviético para viajar à Europa deu-lhe a chance de conhecer Sergei Diaghilev e passar a integrar os seus célebres Ballets Russes.

A chegada de Balanchine à companhia foi arrasadora. Entre outros sucessos, como "Le bal" e "O Triunfo de Netuno” , criou duas obras paradigmáticas: "Apollon Musagette" de 1928 e "O Filho Pródigo" de 1929, ano da morte de Diaghilev e do fim dos Ballets Russes.

Inquieto, investigador, Balanchine continuou na Europa fazendo incursões no cinema e em peças de teatro de revista, até ser convidado a trabalhar com o Royal Danish Ballet (parceira que jamais seria desfeita) e com os Ballets Russes de Monte Carlo. Em 1933, após declinar de um convite para dirigir o Ballet de L'Opéra de Paris, aceitou o convite de Lincoln Kirstein para introduzir o ballet, em caráter definitivo, nos Estados Unidos.

Na América do Norte Balanchine construiu outro império: o do talento, da genialidade, da competência, da percepção e da capacidade de projetar o futuro da dança naquele país.  Uma de suas primeiras exigências - que se tornou uma realidade palpável e importantíssima - foi criar e conferir status de alicerce fundamental à escola de formação de bailarinos - School of American Ballet. Sobre essa estrutura deu início ao projeto, sabiamente conduzido, de trabalhar, preferencialmente, com bailarinos norte-americanos prevendo que a eles caberia o papel de ocupar todos os postos importantes da companhia e, na sua ausência, serem os continuadores de sua obra.

A genialidade de Balanchine, um dos gigantes da arte contemporânea comparável a Pablo Picasso e Igor Stravinski, não pode ser medida em valores; o patrimônio que deixou em termos de obras, o impulso que deu à dança nos EUA, a capacidade de interpretar o sotaque e peculiaridades daquele povo e, sobretudo, sua influência sobre gerações e gerações de grandes criadores é um legado incontestável.  Sua parceria com Stravinski revelou-se riquíssima, proporcionando verdadeira perplexidade pelo contraste e diversidade de estilos, formas e gêneros.

Declarado admirador de Marius Petipa, de quem se considerava o herdeiro e continuador, plasmou seu estilo sob o rigoroso vocabulário da dança acadêmica, para o qual contribuiu com extraordinário enriquecimento de passos e tempos. Um profeta da velocidade e do moto-contínuo da vida contemporânea, eis o que foi Balanchine. Na verdade, o contemporâneo já estava na sua obra quando o mundo da dança ainda discutia o expressionismo e a dança moderna.

Sua competência e preparo lhe permitiram fazer uma clara opção pelo abstracionismo, o que não impediu que, quando quis ou precisou, mostrasse que era magnífico narrador, caso de "Sonho de uma noite de verão" baseado na peça homônima de Shakespeare. 

Minha primeira experiência num papel principal no Theatro Municipal do Rio de Janeiro foi dançando "Paquita", pas-de-trois de Balanchine d'aprés Petipa, ao lado de Alice Colino, primeira-bailarina do Municipal do Rio, e Eduardo Ramirez, primeiro-bailarino do Teatro S.O.D.R.E. de Montevidéu. Infelizmente, os bailarinos de hoje, ainda que muito mais técnicos, se recusam a enfrentar as dificuldades propostas por esse coreógrafo ímpar, nessa pequena peça. Se é para desrespeitar suas peculiaridades é melhor desistir mesmo e executar algo mais banal ou algum clichê de festival assistido e aprendido pelo vídeo.

Para nosso principal Theatro ainda foram montados "Divertimentos nº 15" e "Serenade", uma de suas obras-primas, inacreditavelmente criado em 1934.

Nós, bailarinos brasileiros, nos reunimos às festividades do mundo inteiro para celebrar esse russo genial, o grande tradutor do ballet dos Estados Unidos, uma das maiores personalidades da história da dança de todos os tempos.

Algumas obras de Balanchine: "Apollon Musagette", "O Filho Pródigo", “Serenade”, “Concerto Barroco”, “Ballet Imperial”, “The four temperaments”, “Orpheus”, “Theme and variations”, “Western simphony”, “O Quebra-Nozes”, “Agon”, “Stars and stripes”, “Sonho de uma noite de verão”, “Vienna Waltzes”, “Ballo della Regina”, "Dança Cigana, “Walpurgis Night", "Jewels", "Sylvia pas-de-deux", "Mozartiana", "Symphony in C", "Ballet Imperial" "Firebird", "La Valse"  "Bugaku", Symphony in Tree Movements", “O filho pródigo”, “Night Shadow”, “O soldado e a bailarina”, “Tchaikovsky pas-de-deux”, "Tarantela".

 

 

 

Em tempo: nosso companheiro Emílio Martins, que está em Houston remontando "La Fille Mal Gardée", enviou notícias. Todas ótimas: trabalho intenso, hospedagem confortável e muito respeito, que é bom e a gente gosta. E, além de tudo, temos mais uma brasileira brilhando no exterior: Letícia Oliveira, que  vai interpretar "Lise", o papel principal do ballet. No próximo número,  Emílio, um dos orgulhos do Brasil,  conversará conosco sobre essa temporada com o Ballet de Houston.   

 


 

DEUS, PERDOAI-LHES, ELES NÃO SABEM O QUE OUVEM

 

 

"Massine consolidou o caráter internacional de uma companhia - o Municipal do Rio - que já trazia na sua bagagem, desde 1927, os nomes de Maria Olenewa, Serge Lifar, Vaslav Veltchek, Igor Schwezoff, Nina Verchinina, Maryla Gremo, Madeleine Rosay e Tatiana Leskova."

 

 

Nunca estou atenta à programação da tevê da sala. Reservo-me o direito de, em outro cômodo, escolher os programas que me interessam, em geral na Educativa.

Mas outro dia a irresistível melodia da Quinta Sinfonia de Tchaikovsky invadiu a casa toda. Ainda corria para ver o que estavam transmitindo quando Aldo Lotufo ligou: "Eliana, que novela é essa? De que se trata? A que horas vai ao ar?"

O telefone tocou outra vez; eu já sabia o assunto: "Já ouviu o fundo musical de ”Um só coração"? perguntavam os colegas "antigos".

"E daí?", hão de perguntar os leitores desse espaço.

E daí, que a "Quinta Sinfonia", nome com o qual o célebre ballet de Leonid Massine foi encenado aqui no Theatro Municipal pela primeira vez, marcou um dos períodos mais mágicos da história dos bailarinos daquela casa de espetáculos[1][1]. Posteriormente, na gestão de Jean-Ives Lormeau, revimos emocionados a obra com seu nome original, "Les Présages", ainda desta vez remontada por Tatiana Leskova.

Entusiasmei-me! Procurei informações sobre a minissérie, entrevistas com os atores envolvidos na produção. O ator que representa Santos Dumont fala até em "presságios", o que me levou a crer que os autores conheciam a obra de Massine.

Qual! Que ingenuidade! A melodia vai aparecer, com certeza, num CD da Som  Livre, mal gravada e deturpada. Aparentemente, para todos, tanto faz a música magnífica de Piotr Ilich Tchaikovsky, Villa-Lobos, Chico Buarque de Holanda ou Edu Lobo, só para exemplificar, ou grupo de pagode, dupla sertaneja falsificada e pop bate-estaca norte-americano.

Será que cultura geral é coisa só da geração de Sérgio Britto, de Armando Nesi, de Alexandre Trik? Será que os astros televisivos de hoje já foram ao Theatro Municipal fora da entrega de algum prêmio?

E que dizer de bailarinos que participaram da temporada de 1996 perguntando: "Já ouvi essa música, não me lembro onde. É Wagner?" Trágico!

Decepcionada, achei que me cabia falar um pouco sobre quem foi Massine; até porque em 2005 vai completar cinqüenta anos da sua primeira parceria com a única companhia clássica do Brasil. Não podemos saber tudo, mas precisamos conhecer nossa profissão para não sermos eternos Petroushkas nas mãos de Magos charlatães; ou tachados de bibelôs alienados, belos, vazios e egocêntricos.

Espero que músicos abordem a inigualável obra de Tchaikovsky e sua inestimável colaboração e importância para a história do ballet.

Leonid Massine nasceu em Moscou em 1895. Formado pela Escola de Dança e de Arte Dramática de Moscou, saiu do Teatro Bolshoi para integrar os "Ballets Russes" de Sergei Diaghilev, onde atuou com bailarino e coreógrafo.

Dentre as obras que o transformaram, reconhecidamente, em um dos gênios do século XX vale destacar “Parade”, de 1919, criação histórica, de extraordinária modernidade, sinalizadora dos movimentos fauvista, dadaísta e cubista nas artes plásticas. Com uma ficha técnica impressionante, o ballet teve roteiro de Jean Cocteau, música de Eric Satie e cenários e figurinos de Pablo Picasso.

Desconhecem esses nomes paradigmáticos? Procurem na Britânica ou outra enciclopédia qualquer. A propósito, a Internet ajuda bastante.

Além de "Présages" Massine remontou para o Corpo de Baile do Municipal do Rio: Boutique Fantasque”, “Le Tricorne”, “Le Beau Danube”, "Gaité Parisienne" e “Capricho Espanhol”; criou ainda "Hino à Beleza", sobre composição de Francisco Mignone, para a querida e bela colega Helga Loreida.

Nas bem sucedidas temporadas no Rio em 1955 e 1956 deixou uma lembrança inesquecível. Bons tempos, os que um coreógrafo de fama internacional deixava no acervo da uma companhia tantos trabalhos. "Gaité", "Beau Danube" e "Présages", encenados por quase dez anos com enorme sucesso de público e interpretações maravilhosas, não encontram justificativas para que tenham sido abandonados. Como quase tudo naquele Theatro.

A criação Massine pode ser dividida em duas fases:

. a dos ballets sinfônicos, da fase madura, cujo sentido plástico, escultórico, envolvendo grandes grupos de bailarinos, o fez ser comparado a Salvatore Viganó, o erudito elaborador do Choreodrama;

. a das obras em que predominam os bailarinos demi-caráter, capazes de representar com veracidade, tanto os tipos populares inspirados na Commedia dell’Arte, quanto os humanos, mas fortes e dramáticos, oriundos da poderosa arte da Espanha, por cuja dança se apaixonou e da qual foi sensível tradutor.

A ênfase na dança, na expressividade e na espontaneidade resultou em consagradas interpretações do Corpo de Baile, até porque, essa era nossa principal qualidade. Para dançar Massine é necessário saber dançar muito bem valsa e mazurca, compor personagens com talento e participar da mise-en-scène. Isso, nós sempre soubemos fazer.

Infelizmente, como sempre, bailarinos que trabalharam com o próprio Massine, na última remontagem de "Présages" não foram convidados a colaborar lembrando uma criação, para eles, inesquecível. Preferiu-se convidar um assistente estranho ao Theatro e à obra de Massine. Nossos artistas ficaram assistindo a um dos ensaios na varanda da Escola Maria Olenewa, conversando sobre se tal frase coreográfica era assim, assado, frito ou cozido. Coisas do Brasil.

Da profícua carreira do coreógrafo constam ainda coreografias para outras grandes companhias e para os filmes “The red shoes”, “Contos de Hoffmann” e “Carrossel napolitano” em colaboração com artistas do porte de Cocteau e Picasso, já citados, e Matisse, Masson, Derain, Satie, Beaumont, Desormière, etc. Deixou escrito o livro “My life in ballet”.

A obra de Massine, um dos gênios descobertos por Sergei Diaghilev, compõe uma parte de transcendental importância do abandonado acervo do nosso principal teatro. Essa obra precisa ser recuperada porque Massine é Massine para a história da dança e porque Massine é Massine para nossa própria história. É o que basta.

Ou ouviremos sempre estrangeiros acharem que conhecem mais nossa terra que nós mesmos, pensarem que tudo para nós é novidade, que não temos passado nem tradição alguma. Só eles!

Amparar a obra e seus criadores de um sentido didático que coloque as atuais gerações a par do clima e da atmosfera em que foi concebida, colocá-la de forma inteligente dentro das temporadas (?) é tarefa das direções. Há que lembrar que esses criadores estão muito acima das próprias direções e do gosto imaturo de bailarinos jovens. Esses artistas conheceram a consagração pela notável contribuição que deram ao enriquecimento da humanidade.

Voltando ao título desse artigo, vamos pedir a Deus que perdoe aos que não sabem que estão ouvindo a Quinta de Sinfonia de Tchaikovsky; vamos ensinar aos atores jovens das minisséries da vida que os "presságios" são o título de um dos mais famosos ballets de Massine; vamos mostrar que sabemos e respeitamos nossa trajetória e que, mesmo reconhecendo nossas dificuldades institucionais, nos orgulhamos do que, apesar de tudo, conseguimos construir.

 

[1][1] O ballet contou na estréia brasileira com os consagrados nomes de Ivette Chauviré (étoille da Ópera de Paris), Aldo Lotufo, David Dupré, Tatiana Leskova e Josemary Brantes nos papéis principais.

 

Eliana Caminada é professora de História da Dança na UniverCidade e Universidade Castelo Branco

e foi primeira bailarina do Theatro Municipal - RJ

Página pessoal: http://www.geocities.com/caminadabr


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