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Jornal DAA - Materias - 59

MATÉRIAS


BAILA FLORIPA, UM EVENTO DE CLASSE

 

Porque entre tantas mostras, o "Baila Floripa" merece destaque? Em sua concepção vários aspectos lhe dão uma importância singular:

Por ser uma iniciativa da ACADS (Associação Catarinense de Dança de Salão), o evento confere não apenas visibilidade e divulgação às criações cênicas da dança a dois, como também leva à necessidade da melhor compreensão do que deve significar "concorrência" no meio - não competição vazia, mas sim busca da superação e aprimoramento profissional de cada um em prol do bem maior e de domínio público, que é a arte. Para que esse necessário avanço se dê de maneira cada vez mais estruturada foram vencidas as barreiras mesquinhas do interesse individual inconseqüente e substituídas pelo bom trabalho de classe - o "Baila Floripa" é o resultado da reunião de concorrentes: dos que concorrem para o sucesso da dança de salão.

Definido o legítimo interesse no engrandecimento da modalidade, nota-se que não falta à organização o devido respeito aos artistas, em última análise, aos colegas: desde os ensaios aos camarins, na estrutura, até mesmo na superação da dificuldade orçamentária para que houvesse pagamento de cachê a todos os participantes. Mesmo sabendo que por necessidade de espaços assim para mostrar sua arte e por sentimento corporativo, muitos, se não todos, teriam participado gratuitamente.

A Mostra, em sua segunda edição, manteve a política de evitar a pré-seleção dos trabalhos, com objetivo de agregar, democratizar a oportunidade e despertar para a busca de maior qualidade, o que, por sinal foi predominante nos trabalhos apresentados. E os poucos que não alcançaram o mesmo nível técnico e artístico da maioria, segundo as palavras dos organizadores "cumpriram seu papel ao demonstrar os vários estágios e manifestações que se encontra na dança de salão hoje". Mesmo assim já antevêem que para as próximas edições a pré-seleção venha a se impor.


Laura Flores e Luiz Kirinus no Baila Floripa

Por outro lado, os convidados especiais: Conexion Caribe Cia de Dança, Jaime Arôxa & Bianca Gonzalez e Jomar Mesquita & Juliana Pereira trouxeram não apenas a beleza de suas coreografias, mas também distribuíram conhecimento nas concorridas oficinas - outro ponto alto do evento - onde a disseminação do saber, o intercâmbio e a experiência proporcionadas foram ainda subsidiadas para os sócios novos ou antigos da ACADS, que ganharam significativo desconto, mais uma vez mostrando que muito além do retorno imediato, há uma política de classe a ser criada.

A divulgação nos grandes meios de comunicação foi representativa, houve chamadas e matérias na TV e jornais, o que certamente ajudou a trazer público para as cerca de 1.000 poltronas do confortável Teatro Ademir Rosa nas duas noites de show.

Mas, como nem só de passos vive o dançarino; oportunamente, constou da programação uma mesa redonda, tendo como temática os rumos da dança de salão. O profícuo debate teve à mesa Edson Busch Machado (diretor geral da Fundação Catarinense de Cultura) que versou sobre as possibilidades de divulgação da cultura nacional através da dança, elogiou o trabalho engajado dos jornais específicos de Dança e declarou-se aberto e disposto a participar do crescimento do setor. Lélia Pereira da Silva Nunes (superintendente da Fundação Franklin Cascaes) destacou o valor do fazer artístico. Jomar Mesquita (Mimulus Cia de Dança) chamou a atenção para a necessidade cada vez maior da profissionalização e busca da qualidade nas propostas cênicas e ressaltou que a imagem boa ou ruim que a sociedade venha a ter da dança a dois é responsabilidade de seus artífices. Jaime Arôxa lembrou o fato da dança social ser uma arte democrática, que pertence ao salão e que o professor é peça chave para que ela seja perpetuada e fruída em toda sua plenitude, que portanto deve valorizar-se através do constante aprimoramento, além de saber respeitar e lidar com os alunos. Ricardo Garcia (Conexión Caribe) defendeu o apreço à riqueza cultural nacional e latina, ressaltando que há uma grande responsabilidade por parte do professor na difusão e conscientização sobre todo o contexto cultural que envolve nossas danças. Alexandre Melo (presidente da ACADS) que foi o mediador, falou sobre a necessidade de mais recursos para custear eventos como o "Baila Floripa". Após a exposição inicial, a assistência pôde fazer perguntas e, fato raro neste tipo de reunião, todos queriam participar, expor dúvidas e opiniões, sendo que as colocações feitas pelos dançarinos presentes mostraram-se muito oportunas servindo para estimular o debate que acabou por se estender além do previsto e mostrar o quão mobilizada está a classe.

Para encerrar, um belo baile e todo mundo correu para o abraço - era hora de comemorar uma grande realização da dança a dois. O "Baila Floripa" contou com o patrocínio da Fundação Franklin Cascaes, da Prefeitura Municipal e da Açoriana Turismo e Câmbio.


QUEM DISSE QUE SÓ NO FUTEBOL O BRASIL TEM 'FENÔMENO'?

Só não viu quem não quis! Não foi o caso de Dino Carrera, Mariza Estrella e de grandes figuras internacionais da dança; não foi o caso desta bailarina. Tampouco de Dalal Achcar, cujo olhar diaghileviano ousou lançar Thiago Soares aos 19 anos em 'La Bayadère', um dos mais difíceis ballets do repertório universal remontando por Nathalia Makarova. Talento incomum, esse jovem oriundo da street-dance já nos deixou e está em rápida ascensão no Royal Ballet de Londres, onde Roberta Marques também atuou como artista convidada, outro orgulho e legítimo produto do ballet do Brasil. Conversamos por telefone no intervalo entre dois espetáculos com direito a interrupção entre eles para Thiago refazer a maquiagem. Prosseguimos o papo na manhã seguinte, num belo e raro dia de sol, por celular. Com uma ponta de tristeza percebi que dificilmente o teremos de volta. Pena para nós; bom para a Inglaterra.

Eliana Caminada: Somos historicamente discriminados; pior: nos discriminamos. Refletindo sobre isso como tem sido sua experiência com o Royal Ballet?

Thiago Soares: Creio que, ao menos no estrangeiro, isto está superado. Cheguei há nove meses e no início as coisas são difíceis para todos, até para meu amigo Carlos Acosta (grande bailarino cubano). Respeito e posição se conquistam dentro da companhia, com trabalho diário, ainda que levemos na bagagem prêmios e títulos.

EC: Você precisou se aperfeiçoar fora do Brasil para conseguir entrar no mercado de trabalho internacional?

TS: Rigorosamente, não! Foi aí mesmo, com mestres, na sua maioria, brasileiros, que aprendi tudo que sei e ganhei o concurso de Moscou, entre outros. Escolhi bem por intuição, encontrei os profissionais certos na hora certa. Roberta, minha companheira em vários momentos importantes, é um belo exemplo disso. Pode ser mais linda? O que tenho adquirido fora é experiência de palco - a média de espetáculos no Royal é de 160 por ano. É o ritmo de trabalho que dá segurança, oportunidade e versatilidade.

EC: Esperava que a oportunidade de atuar num papel principal surgisse tão cedo?

TS: Não. Foi uma sorte reencontrar Makarova que chegou para remontar sua versão de 'A Bela Adormecida'. Inicialmente, fui escolhido para interpretar Carabosse (A Fada Má, papel feminino originalmente criado para Enrico Checchetti); o partner da primeira-bailarina Tamara Rojo lesionou-se e, após alguns testes que não solucionaram a emergência Monica, Mason, nossa diretora, permitiu-me ensaiar em caráter provisório. Tamara fez o resto, foi maravilhosa, nosso entrosamento foi fácil: ganhei um espetáculo e creio que não decepcionei porque fui escalado para outras récitas. Sinto-me privilegiado pela rara oportunidade de atuar em dois papéis contrastantes. Fui testado, poderia não ter dado certo. Deu!!!

EC: Como repercutiu a crítica de John Percival, que faz especial menção a isso? O que lhe pareceu mais difícil? Carabosse é obviamente difícil para sua idade; por outro lado o príncipe Desiré é uma verdadeira cilada onde inúmeros bailarinos fracassam. E num país onde 'Bela' é uma tradição, para um público acostumado a ver Rudolf Nureyev, insubstituível no papel até hoje.

TS: Estou num universo de ballet acostumado a grandes estrelas. Críticas, positivas ou negativas, têm um peso relativo. Mas fiquei radiante - foram várias. A própria diretora me entregou comentando que estreantes, sobretudo de fora, ao contrário do que me acontecera, penam bastante. Como você comentou, Desiré é um papel clássico, nobre, cheio de sutilezas e dificuldades inesperadas que preciso trabalhar mais. Carabosse: penso que como observadora atenta, Makarova apostou na versatilidade latina para conseguir uma atuação teatral convincente; e são poucos os bailarinos atuando em papéis demi-caráter. Acho que a sorte também é minha companheira.

EC: Conhecemos os eternos problemas de verba e de política cultural do Municipal. Ainda assim, como avalia sua passagem pelo Corpo de Baile ao entrar numa companhia internacional desse porte; o que você está dançando?

TS: Sem passar pelo Theatro eu não estaria aqui, foi fundamental. Há um reconhecimento de que cheguei com uma bagagem, que não sou um iniciante aprendendo a decifrar códigos estranhos. Afora ballets de repertório tradicional danço 'Judas Tree', 'Gloria', 'Danses Concertantes' e estou aprendendo 'Romeu e Julieta', todos de MacMillan - é como cursar uma escola de teatro - e sempre assisto 'Mayerling', 'Winter Dreams', obras das quais me sinto próximo, adoro. Em 'Manon' faço vários papéis consciente de que só ganho com isso. Sou jovem, fazer conjunto, pequenos solos... é uma experiência para o resto da vida. Percebo isso nos que chegaram à direção. Mas já estou escalado para dançar Solor em 'Bayadère' (um marco para mim) no próximo ano e vibrei ao ser escolhido e ensaiado por Sylvie Guillem em 'In the needle', pas-de-deux criado para ela por William Forsithe. Estreei com Marianella Nunez, bailarina principal; como desconhecer a importância desse momento?

 

Débora Bastos, querida amiga e professora do Centro de Danças Rio, foi a primeira pessoa que viu Thiago numa sala de aula e reconheceu, imediatamente, que estava diante de uma rara exceção. Também batemos um papo.

EC: Thiago sempre fala em você. Como o conheceu?

Débora Bastos: Ele chegou indicado por um colega: 'Quero aprender jazz.' Pedi que retornasse com roupas adequadas, queria avaliar-lhe as possibilidades. Ele que já tinha 15 anos. E vimos, eu e Mariza, o vigor, a extensão, o ballon, a beleza. Examinei os pés e pensei: 'É uma maravilha dançando street-dance; mas tem tudo para ser um grande bailarino'. 'Ballet? Deus me livre.' Levei-o para assistir um vídeo de Fernando Bujones, não sei quantas vezes ele viu a fita. No outro dia, sem base, sem saber como, tentava reproduzir o que tinha visto. Avisei-lhe: 'Ou faz ballet ou esquece o que viu.' Pensou uns dias e começou as aulas com Angélica Fiorani: incredulidade. Emílio Martins, sempre generoso, se recusou a cobrar-lhe um curso de férias. Em dois anos ele vencia todos os concursos. O resto você conhece. Na essência não mudou nada; continua tão simples quanto lúcido; sabe o que quer, persegue seus sonhos.

Mariza Estrella fala com emoção de seu menino: 'Orgulho-me da carreira de Thiago; soube no primeiro instante que me traria muitas alegrias. Dentre tantos talentos revelados pelo Centro de Danças Rio, ele foi especial. Sua ascensão foi rápida, cedo sua dança impressionou grandes nomes no Brasil e no exterior. Como esquecer a emoção de vê-lo, tão inexperiente da vida, receber seu primeiro e valioso prêmio no Concurso Internacional de Paris, da correria de aulas e ensaios, do troféu recebido das mãos da esposa do Presidente da França senhora Bernadeth Cherrat num jantar no Palácio do Governo? Tremia mais do que ele! Prossiga Thiago, como você é, com sua simplicidade, com o amor e respeito que sempre dedica a todos nós. Sucesso e mais sucesso, é o lhe que desejo.

Encerramos com o valioso depoimento de Dino Carrera: 'Ele tem, acima de tudo, a virtude da "fisicalidade", termo que poderia ser usado para designar a capacidade de um corpo humano de transcender-se contando consigo mesmo, de surpreender-se sem tornar aparente um plano prefixado. Essa forma de movimento imprevisível, que aparece em poucos bailarinos e muito raramente em corpos treinados pela técnica acadêmica, é como um mistério que tento, anos a fio, explicar a mim mesmo.

Há dois meses do Concurso Internacional de Paris de 1998 Mariza me confiou a profissionalização de Thiago. Vi nele essa "fisicalidade" própria, original, que não tem repetição, além de um fogo apressado, rebelde porém reverente, desorganizado e inconsciente, mas brilhante. Aceitei. E sou feliz porque creio que consegui, sobretudo, repassar para ele a consciência desse dom. Caberia neste depoimento o anedótico, os dias de trabalho intenso tentando (e conseguindo) o grande salto sobre a base que os melhores professores, de Débora Bastos, Angélica Fiorani a Pedro Kraszczuk, tinham criado nele? Poderia contar as aulas e ensaios que visavam explorar seus limites e a consciência destes sob a competente colaboração de Yellê Bittencourt e Rosa Bustelo? Seria cansativo enumerar as análises pormenorizadas dos detalhes estilísticos, sua aceitação da eliminação das folgas? De outra forma, como explicar a reformulação operada no corpo daquele jovem de dezesseis anos, cujo sonho de glória era dançar? E como definir o conto de fadas do garoto que se viu de repente dançando em Paris (com orquestra!), ou numa recepção no palácio presidencial com uma Medalha de Prata nas mãos? E vê-lo, aos vinte e dois anos, depois de Medalha de Ouro em Moscou, primeiros papeis no Brasil, na Rússia e no Japão, se transformar com rapidez, de acordo com os moldes do exigente Royal Ballet numa obra artística em si mesma, num homem completo e íntegro, poderoso instrumento que une ética e estética?

Nesses anos, na interface resultante do amor e do sonho, de contato rude que grita e berra, e de ternura, decidimos, quase sem perceber, que éramos pai e filho o que, para mim, foi um dos presentes maiores que até hoje recebi.

Muitos participaram, junto ao CBDD, à UERJ e ao Theatro Municipal, dessa construção que levou ao Thiago de hoje: vertiginoso mar de nomes, de palpites, de colaboração, de generosidade. Mas a integração com Dalal Achcar trouxe a experiência e a competência definitivas. Fiz! Convidei-a para ver a nova sala de dança no Teatro da UERJ no momento em que Thiago ensaiava, pequena armadilha, nunca confessada, tramada para que ela visse seus "jetés en manège". Quem sabe ela o levaria para o Municipal? Insisti na sua presença nas Galas UERJ de Dança de 99; urgia observar seu Corsário, seu Acteón. ' Há muito tempo não encontrava um "partenaire" com essa força e gentileza', felicitou-me o diretor e primeiro-bailarino Desmond Kelly.

Londres, 18 de maio: Thiago Soares faz vinte e dois anos de vida e sete de dança. Num dia cinza e úmido - para variar - que contrastava com a luminosidade do Rio, ele me falou de projetos, de trabalho e trabalho, de vida pessoal, e de certezas, num discurso de primeira maturidade em que, mais uma vez, reconheci frases e idéias das quais se já se apropriou, mas que custaram discussões para que as aceitasse como verdades; e mais uma vez lembrei dele, cinco anos atrás, no meu gabinete no Teatro com Mariza, meio assustado, desconfiado, mas decidido a se entregar para crescer e dois meses mais tarde, aos berros, ele em Paris, eu no Rio, orientando-o: 'Thiago, não é cafona beijar a mão da Primeira Dama da França.'

Thiago Soares já está entregue ao seu destino: brilhar como brasileiro no mundo. Tomara que a justiça social consiga que os outros tantos Thiagos que devem existir neste Brasil de 180 milhões de artistas possam crescer a esses níveis. Assim seja!


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