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MOSAICO


EVOÉ, Laban!

É com grande alegria que me detenho para escrever este artigo, através do qual posso digerir e compartilhar com vocês, leitores, a imensa satisfação que tive em participar do Encontro Laban 2002, recentemente realizado no MAM-RJ e na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. O congresso, com um formato extraordinariamente dinâmico, abordou o tema da linguagem do corpo desenvolvida e aplicada segundo as teorias de movimento de Rudolf von Laban e Irmgard Bartenieff.

É para se louvar o trabalho de Regina Miranda e de sua equipe pela excelência com que organizaram e conduziram o evento, marcado pela diversidade, simplicidade e profundidade dos trabalhos apresentados por artistas, terapeutas, comunicadores, esportistas e educadores. Qualidades que, sem dúvida, promovem a conjunção do poder e da beleza do ser humano compartilhando experiências e expectativas. Evoé!

Assim, um animado e simpático grupo, de velhos companheiros e novos conhecidos, participou ativamente dos workshops e dos painéis expositivos aproveitando a presença de especialistas de diversas áreas do movimento, como: Valerie Preston-Dunlop, do Laban Center de Londres; Virginia Reed, Karen Bradley, Ellen Goldman, Martha Eddy, do Laban/Bartenieff Institute of Movement Studies de Nova Iorque; Thomas Casciero, Bala Sarasvati, Angela Loureiro, Noelle Simonnet, Cibele Sastre, Enrique Pisani, Su Johnston, entre outros.

Dar e receber, trocar e criar conexões, ouvir, olhar, mover-se, ler em voz alta, conversar, escrever, tocar, sorrir... foram as ações que permearam os 7 dias do encontro, de tal modo que se configurou uma grande espiral, composta por pessoas de vários cantos do mundo, como a forma resultante de um comovente abraço, proposto pela coreógrafa carioca. Regina, aliás, em termos de dança coral, harmoniza como poucos. Os jardins do Éden do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro foram movimentados por essa dança de conjunto que por sua própria natureza e formato refrata harmonia, solidariedade e esperança. O resgate do espaço do Museu é outro ponto bastante significativo, à medida que se tornou um palco-paraíso, pela sua tradição modernista, para a dança contemporânea carioca.

Sei que muitos dos que lá estavam sentiram fundo a emoção deste re-encontro, coroado por uma bela recepção no Parque Lage, mais um reduto da dança resgatado. A Escola de Artes Visuais, belissimamente iluminada e ornamentada, reabriu as salas em torno da piscina, exibindo simultaneamente várias peças coreográficas. Tanto no MAM quanto no Parque Lage o Encontro Laban funcionou como um palco aberto e caleidoscópico, cuja programação foi apresentada como um mosaico de situações a serem experimentadas. A simultaneidade e a multiplicidade das abordagens instigaram os participantes à composição de seu próprio percurso e a cada pessoa foi dada a oportunidade de configurar o evento de acordo com seus próprios desejos e interesses, proporcionando, assim, uma experiência inédita e particular de compartilhamento e troca de informações, bem de acordo com as propostas formuladas por Laban.

De fato, a teoria de Laban investiga os conceitos de representação e expressão, intensamente discutidos na Europa do final do século XIX até a primeira guerra mundial. Laban parece ter procurado a essencialidade expressiva do indivíduo veiculada pelo corpo, na medida em que seu olhar viu o movimento e a expressão humana como objetos de conhecimento e arte. O que concretizou-se, então, na cena teatral moderna, via Delsarte, Dalcroze e Laban, foi a questão da passagem do ato de representar ao de expressar, materializada pela conexão da dimensão dos processos interiores e suas dinâmicas rítmicas e da dimensão física do homem. No século XX, à luz do teatro oriental, essa conexão torna-se evidentemente uma conexão entre ética e percepção, possível somente a partir de uma atitude adequada ao trabalho criativo que impulsiona as descobertas artísticas. Daí, efetivou-se o compromisso com uma ética de construção de linguagem e um sentido de missão artística, que assumimos como uma herança modernista e cuja postura não pode ser, de modo algum, comparada à ocasionalidade e à efemeridade das relações contemporâneas, como querem alguns.

Suponho, ainda, que Laban elaborou sua teoria da dança vislumbrando uma atitude ampla e flexível, por meio de um olhar que abrange e integra as pessoas, as coisas, os fenômenos naturais e a arte. Por conseguinte, livre de julgamentos de qualquer tipo, percebemos que, como um conjunto interseção, podemos reunir as forças naturais da biofísica como suporte estrutural, a espiritualidade metafísica das manifestações ritualísticas como ferramenta de transporte e as possibilidades formais da linguagem artística, para configurarmos posturas, gestos e percursos que refletem tanto a nossa perspectiva individual como sujeitos, quanto a social como cidadãos. Entretanto, a preocupação em integrar o indivíduo, transformado nos centros urbanos em homem-massa e homem-máquina, na sua especificidade expressiva é, de todo o modo, uma característica missionária do início do século, mas que existe até hoje, como resistência ao isolamento total e à degradação ética.

Atualmente ainda pesquisa-se tanto os desdobramentos quanto os desmoronamentos da estrutura psíquica, vista como suporte do sujeito e do corpo. A dança contemporânea, por um lado, passou a ser vista como uma tradução privilegiada de um momento efêmero que tende ao despojamento total, cujo tratamento enfatiza o corpo como resíduo da existência. Um exemplo disso é a mecanização e a repetição do movimento usado como recurso que gera uma imagem de desmantelamento e desconstrução corporal. Por outro, existe, ainda, uma alternativa poética de expansão, na qual prevalece o ser dissolvido de seu ego, porém completamente integrado ao espaço. Ou melhor, uma poética de conexão espacial e de integração entre várias linguagens artísticas, aberta e renovadora, que aponta para o engrandecimento humano e para a liberdade existencial.

Olhando por esse prisma multifacetado, pelo qual a luz mística da criação também nos atravessa, vê-se que há uma formulação sintática do movimento, na medida em que se deseja difundir uma linguagem fundamental e inerente ao ser humano. Como linguagem artística condensa, a seu modo, as leis da subjetividade expressiva, as leis físicas do espaço a biofísica do corpo, reunindo em si as imagens subjetivas dos seres e a matemática objetiva dos sólidos espaciais. A linguagem do corpo que dança revela-se, por seu turno, como uma poética extremamente complexa e particular, que ganha sentido a partir do abandono de todas as regras pré-fixadas das posições narcisistas, autoritárias e fechadas dos conceitos interpretativos vigentes e dos clichês gestuais narrativos da pantomima, do ballet acadêmico e do cotidiano, por exemplo.

Entretanto, o discurso do movimento para ser entendido como forma artística ou meio de comunicação, depende de uma dinâmica dialógica e aberta que desloca, tanto aquele que observa quanto o que se movimenta, do lugar-comum positivista em torno do eixo-vertical, representado pela postura ereta da coluna vertebral, para outros eixos de observação e de tensão. A descentralização dos pontos de apoio e o desvio do vetor vertical do pensamento iluminista para outras direções abrem um leque imenso de expressões e de leituras além da descoberta de que existem, na linguagem corporal, inúmeras possibilidades e maneiras de conduzir, ler e interpretar um discurso, e que, cada um, pode tanto expandir o seu vocabulário pessoal, quanto ampliar o entendimento da complexidade expressiva de si e dos outros, uma vez que vivos todos se movem, pensam e se comunicam. A dança, como poética do movimento articulada entre corpo, espaço, esforço e forma, se materializa pelo impulso do desejo de vida e pela vontade interna de fazer ou criar um sentido.

Por conseguinte, a abertura modernista e o desmoronamento de todo um sistema que se baseava na exatidão da visão e na coincidência entre o valor e a realidade, revelam um mundo que nossos sentidos nos desvendam como um conjunto de fenômenos que têm poucas relações com a realidade das coisas, mas que pode ser representado, paradoxalmente, como um refratário de esperança, do mesmo modo que a abordagem de Laban irradia caminhos para se pensar a vida como algo mais interessante que a mera representação da realidade cotidiana. Desse modo reafirma-se a dança como uma experiência poética que torna possível a experiência do sagrado na vida social e urbana.

Por fim, gostaria de acentuar a importância histórica do Encontro Laban 2002, como um marco no intercâmbio entre os profissionais da linguagem do movimento, os pesquisadores e os amantes da dança, como também a certeza de que somos peças relevantes no mosaico da dança mundial. Portanto, finalizo com uma apologia à dança, através de uma citação do próprio Rudolf Laban:

"A mímica é a prosa da linguagem do movimento. A dança é a poesia. Uma imita a realidade, a outra penetra no mundo do silêncio onde o homem, para além do gesto utilitário, antecipa seu próprio futuro."

 

Marina Martins é

dançarina, coreógrafa,

diretora, professora e

pesquisadora


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